Pequenos Portugueses
A figura do Marquês é complexa, como todas as outras, aliás, e vou ater-me apenas a este ponto. Ao contrário do que muitos possam pensar, o autoritarismo e o capitalismo (não os capitalistas, mas isso é outro post) não têm uma convivência natural. O capitalismo requer liberdade de troca mas também responsabilidade e para isso é necessário algum tipo de autoridade. Contudo, a autoridade, só por si, não cria capitalismo algum, especialmente se for um autoritarismo que todos paralisa através do terror. É um contra-senso impor o capitalismo, o máximo que se pode fazer e deixá-lo acontecer.
A inclusão de Salazar na lista dos 10 mais é incómoda para muitos. Mas pode ser uma oportunidade para matar alguns fantasmas. Até arrisco dizer que esta sobrevalorização de Salazar é mais uma das consequências inesperadas das “conquistas de Abril”, vejamos porquê. Os que reclamam os louros de ter feito o 25 Abril acontecer, especialmente se tiveram um passado de luta “anti-fascista”, têm pouca obra para mostrar. A liberdade que hoje temos não é a mesma liberdade que nos queriam impor. A maior riqueza que hoje desfrutamos não advém das suas políticas mas precisamente daquelas a que sempre se opuseram. Mesmo o Estado Social é obra do regime anterior, pela mão de Marcello Caetano. As próprias conquistas de direitos e regalias para os trabalhadores, reclamadas pelos sindicatos abrilistas, são meras ficções. Elas são a consequência do crescimento económico e não da berraria sindicalista.
Face a isto, o que têm os “heróis de Abril” para oferecer? Apenas um peito inchado para cantar as fábulas em que eles mesmo são os heróis que lutaram contra a besta fascista. O resultado é que quase 5 décadas do anterior regime foram resumidas em poucos slogans. Criou-se um interdito que, estranhamente, conseguiu beneficiar tanto Salazar como Cunhal. Salazar é beneficiado porque não é banalizado e quem não o identifica com o mal absoluto poderá ter a tendência para lhe ver um brilho especial, uma aura de salvador. Fosse visto tal como ele é, sem complexos de esquerda, dificilmente Salazar entraria nos 100 mais.
Salazar e Cunhal foram tanto adversários como aliados. É difícil saber se a sua aliança chegou a ser intencional ou mesmo consciente mas, dado tratarem-se de duas pessoas inegavelmente inteligentes, não se pode afastar qualquer uma das possibilidades. A Salazar interessava manter o regime e para isso ajudou a existência controlada de um Partido Comunista como uma ameaça sempre latente, mesmo que irrealista. Não que a estratégia de manutenção do Estado Novo dependesse apenas da sugestão da ameaça comunista, nem digo que fosse pedra fundamental. Mas quem queira conhecer a realidade deste país não pode esquecer que muitas pessoas, que nada admiravam o Estado Novo, nunca contra ele se mobilizaram dado o que sabiam dos acontecimentos dos regimes comunistas.
A Cunhal interessava a implementação do comunismo em Portugal e não propriamente o derrube do regime. Note-se que, ao contrário de outros partidos comunistas na Europa, o português nunca teve intenção de levar para a frente o socialismo pela via democrática. O derrube do Estado Novo apenas mediante determinadas condições poderia abrir caminho para a tomada de poder pelos comunistas, tinha de ser na altura certa e da forma apropriada. Mais facilmente a derrocada do salazarismo poderia dar lugar a outra ditadura reaccionária que, quase certamente, iria perseguir o comunismo de forma muito mais feroz. O que os comunistas esperavam não era a oportunidade que a democracia lhes iria dar para se afirmarem. A sua rede de influência já estava consolidada mesmo no Estado Novo, o que esperavam era o momento de transição, em que a indefinição do momento lhes abrisse caminho para a tomada do poder. E nessa transição confiavam no apoio internacional do bloco soviético, que dificilmente iria ocorrer antes num pais membro da NATO.
As votações em Cunhal e Salazar, bem como no Marquês de Pombal, pouco têm em conta estas disposições estratégicas. Representam o poder, a vontade, mesmo a teimosia e a crueldade. Todos, à sua maneira, pretenderam reencarnar D. Sebastião, não o verdadeiro, obviamente, mas o ideal, o omnipresente, a referência única, o salvador. Foram, provavelmente, os três portugueses que mais danos causaram ao país.