sexta-feira, janeiro 26, 2007

Pequenos Portugueses

Já fiz uma apreciação do programa “Grandes Portugueses” em termos mais suaves aqui. Entre os 10 finalistas, todas grandes figuras mas apenas alguns grandes homens, constam várias personagens autoritárias. O autoritarismo de D. João II ou Vasco da Gama serão compreensíveis para a época em que viveram. Bem mais preocupante é a inclusão de 3 figuras mais recentes: O Marquês de Pombal, Salazar e Álvaro Cunhal. O defensor do Marquês de Pombal disse, ressalvando algum erro de memória, que esta personagem teve que enfrentar as resistências à mudança daquela época e só não conseguiu impor um capitalismo a sério em Portugal. Por isso, ainda hoje se chama Terreiro do Paço à Praça do Comércio, apesar da mudança de nome decretada por Pombal.

A figura do Marquês é complexa, como todas as outras, aliás, e vou ater-me apenas a este ponto. Ao contrário do que muitos possam pensar, o autoritarismo e o capitalismo (não os capitalistas, mas isso é outro post) não têm uma convivência natural. O capitalismo requer liberdade de troca mas também responsabilidade e para isso é necessário algum tipo de autoridade. Contudo, a autoridade, só por si, não cria capitalismo algum, especialmente se for um autoritarismo que todos paralisa através do terror. É um contra-senso impor o capitalismo, o máximo que se pode fazer e deixá-lo acontecer.

A inclusão de Salazar na lista dos 10 mais é incómoda para muitos. Mas pode ser uma oportunidade para matar alguns fantasmas. Até arrisco dizer que esta sobrevalorização de Salazar é mais uma das consequências inesperadas das “conquistas de Abril”, vejamos porquê. Os que reclamam os louros de ter feito o 25 Abril acontecer, especialmente se tiveram um passado de luta “anti-fascista”, têm pouca obra para mostrar. A liberdade que hoje temos não é a mesma liberdade que nos queriam impor. A maior riqueza que hoje desfrutamos não advém das suas políticas mas precisamente daquelas a que sempre se opuseram. Mesmo o Estado Social é obra do regime anterior, pela mão de Marcello Caetano. As próprias conquistas de direitos e regalias para os trabalhadores, reclamadas pelos sindicatos abrilistas, são meras ficções. Elas são a consequência do crescimento económico e não da berraria sindicalista.

Face a isto, o que têm os “heróis de Abril” para oferecer? Apenas um peito inchado para cantar as fábulas em que eles mesmo são os heróis que lutaram contra a besta fascista. O resultado é que quase 5 décadas do anterior regime foram resumidas em poucos slogans. Criou-se um interdito que, estranhamente, conseguiu beneficiar tanto Salazar como Cunhal. Salazar é beneficiado porque não é banalizado e quem não o identifica com o mal absoluto poderá ter a tendência para lhe ver um brilho especial, uma aura de salvador. Fosse visto tal como ele é, sem complexos de esquerda, dificilmente Salazar entraria nos 100 mais.

Salazar e Cunhal foram tanto adversários como aliados. É difícil saber se a sua aliança chegou a ser intencional ou mesmo consciente mas, dado tratarem-se de duas pessoas inegavelmente inteligentes, não se pode afastar qualquer uma das possibilidades. A Salazar interessava manter o regime e para isso ajudou a existência controlada de um Partido Comunista como uma ameaça sempre latente, mesmo que irrealista. Não que a estratégia de manutenção do Estado Novo dependesse apenas da sugestão da ameaça comunista, nem digo que fosse pedra fundamental. Mas quem queira conhecer a realidade deste país não pode esquecer que muitas pessoas, que nada admiravam o Estado Novo, nunca contra ele se mobilizaram dado o que sabiam dos acontecimentos dos regimes comunistas.

A Cunhal interessava a implementação do comunismo em Portugal e não propriamente o derrube do regime. Note-se que, ao contrário de outros partidos comunistas na Europa, o português nunca teve intenção de levar para a frente o socialismo pela via democrática. O derrube do Estado Novo apenas mediante determinadas condições poderia abrir caminho para a tomada de poder pelos comunistas, tinha de ser na altura certa e da forma apropriada. Mais facilmente a derrocada do salazarismo poderia dar lugar a outra ditadura reaccionária que, quase certamente, iria perseguir o comunismo de forma muito mais feroz. O que os comunistas esperavam não era a oportunidade que a democracia lhes iria dar para se afirmarem. A sua rede de influência já estava consolidada mesmo no Estado Novo, o que esperavam era o momento de transição, em que a indefinição do momento lhes abrisse caminho para a tomada do poder. E nessa transição confiavam no apoio internacional do bloco soviético, que dificilmente iria ocorrer antes num pais membro da NATO.

As votações em Cunhal e Salazar, bem como no Marquês de Pombal, pouco têm em conta estas disposições estratégicas. Representam o poder, a vontade, mesmo a teimosia e a crueldade. Todos, à sua maneira, pretenderam reencarnar D. Sebastião, não o verdadeiro, obviamente, mas o ideal, o omnipresente, a referência única, o salvador. Foram, provavelmente, os três portugueses que mais danos causaram ao país.
MC
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sexta-feira, janeiro 19, 2007

Aborto e Referendo (VI)

Será relevante saber quando começa a vida humana? Foi dos assuntos mais falados no referendo anterior mas penso tratar-se de uma verdadeira infantilidade. Claro que para quem não aceita discutir a pena de morte é delicado falar em vida humana intra-uterina e ser “pró-escolha”. Não há ninguém no seu perfeito juízo que possa negar que depois da concepção já está em marcha um processo que levará à formação de um ser humano completo. Isto não implica que um aborto seja igualmente condenável ou desculpável tanto ao fim de uma semana como ao fim de 9 meses. A verdadeira diferença não está num suposto marco existencial onde passamos a seres humanos. Tentar determinar isso, para lá da concepção, é tentar descobrir os desígnios de Deus, da evolução, da Natureza ou do que quiserem, numa arrogância em não ver as limitações da mente humana. Contudo, o que se pode determinar é a partir de que altura o novo ser em formação já tem capacidade de sofrer. Imagino que essa capacidade não apareça toda de uma vez, nem faço ideia em que altura ocorre. Nem sequer adianto que deva ser o único factor a ter em conta para o (eventual) fixar o prazo para a IVG.

Existe um limite, que me parece óbvio, para o tempo máximo de gestação onde depois do qual nunca deveria ocorrer um aborto, salvaguardando eventuais situações excepcionais. Esse limite é aquele onde o desenvolvimento do novo ser já pode ser assegurado sem a exclusividade da mãe biológica. Esse limite será sempre essencialmente estabelecido pelo estado da tecnologia e ninguém saberá até quão perto da concepção poderá chegar. Repare-se que não foi dito que o limite será totalmente estabelecido por considerações tecnológicas, já que se poderá chegar a situações que levantem novos dilemas verdadeiramente existenciais, que hoje não conseguimos conceber.

Mas existem outros dilemas que se podem colocar muito mais brevemente. Mas fácil que transferir um feto para uma incubadora artificial poderá vir a ser a transferência para outro ventre feminino. A partir da altura em que tal operação é realizável, em termos de tempo de gestação, até que ponto é ético realizar um aborto sempre que exista uma mulher disponível em aceitar o feto? Levantar-se-iam toda uma série de questões. Por exemplo, teria sentido em falar de apenas uma mãe biológica? Em que condições a «mãe original» poderia reclamar de volta o feto, caso mudasse de opinião? Que direito tem uma «mãe biológica adoptiva» em abortar? E em fazer também ela uma transferência para uma «segunda mãe biológica»? Naturalmente estas coisas teriam que ser contratualizadas, já que não parece existir outra forma de responsabilizar quem quer que seja.

MC
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Aborto e Referendo (V)

As decisões são facilitadas ou “complexadas” quando se lhe juntam alguns critérios éticos. Por exemplo, na situação exposta no final do post anterior (comparação entre os custos associados ao financiamento do aborto com outras alternativas, na área da saúde, que se poderiam realizar com o mesmo dinheiro), será legítimo comparar o aborto, quando não há perigo para a saúde física ou psicológica da mulher, com situações de verdadeira doença? A pergunta ainda poderia ser refinada distinguindo doenças que ocorrem por «fatalidade» e outras seriamente influenciadas pelo estilo de vida escolhido pela pessoa.

Contudo, a principal objecção ética à subsidiação do aborto está na implicação, indirecta mas bem real, de obrigar muitas pessoas a pagar o acto abortivo que lhes repugna profundamente. Não se trata de saber quanto é já que poderia ser só um cêntimo. Diga-se, em abono da verdade, que esta objecção não faz qualquer sentido para os indivíduos que têm uma concepção socialista da sociedade. Para estes, não só é natural a ingerência do estado em toda e qualquer actividade do ser humano, como a recolha de impostos de forma coerciva é apenas um corrigir de injustiças. Para estes, a única ética é a definida pelo estado, naturalmente quando dirigido por pessoas esclarecidas como eles e, de forma parcial, nas sociedades democráticas quando em prol de causas progressistas.

Ora, apresentar objecções a um socialista, especialmente se for marxista, é tarefa invariavelmente inconsequente, porque teríamos de previamente desmontar todo o seu universo conceptual, pedra por pedra. Já é mais insólito quando pessoas insuspeitas de simpatias socialistas apresentam argumentos do género: «Eu já sou obrigado a pagar tanta coisa que não gosto, então contribuir para o aborto não vai fazer qualquer diferença.» Este tipo de argumentação patética faz lembrar o “Perdido por um, perdido por mil” ou “A prazo estamos todos mortos”, que duvido que haja alguma intenção séria em pensar no assunto mas apenas excesso de adrenalina derivada ao confronto.

O último argumento de peso contra a subsidiação do aborto é que esta promove a irresponsabilidade. Até diria que este argumento nem pode ser verdade já que é impossível algo ser uma irresponsabilidade se é pago, total ou parcialmente, pelo estado. Tenha-se em conta que não é possível falar de responsabilidade em termos mais elementares que o próprio termo em si. A palavra tem uma conotação vazia para quem não tem o próprio sentido, diria mesmo a sensação física, da responsabilidade. E é precisamente esta ausência que leva algumas pessoas a lançar qualquer argumento que lhe venha a cabeça, como comparar o espermatozóide ao embrião.
MC
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Aborto e Referendo (IV)

Quem se deu ao trabalho de ler os posts anteriores terá percebido que não há uma tomada de posição em relação à despenalização IVG. Há, no máximo, alguma perplexidade pelo que parece ser a inevitável degradação no nível do debate sobre o aborto. Perplexidade, em primeiro lugar, porque o aborto está em vias de deixar de ser um dilema moral para ser uma questão tão banal como decidir um restaurante para jantar. Mas a maior perplexidade nem a isto se deve, porque devemos nos conformar a que as pessoas possam ter as posturas mais fúteis perante as situações mais delicadas. O problema é quando esta ligeireza passa a ser um “problema de todos nós”, quando as responsabilidades individuais são diluídas numa solidariedade forçada.

Há uma falsa tomada de posição ideológica sobre o aborto. Porque razão a defesa da liberdade individual da mulher há-de ser um assunto da esquerda? E logo da extrema-esquerda que está sempre na linha da frente na proposta de medidas colectivistas em desfavor das liberdades individuais. A defesa do feto seria, em teoria, uma causa extremamente apelativa para a esquerda, sempre pronta a dizer-se ao lado dos mais desfavorecidos. Não o é porquê? Simplesmente porque é uma causa já adoptada por outros. E entre partilhar uma causa com o inimigo (a suposta direita) e mudar de causa para poder entrar em confronto, a escolha recai sempre na última hipótese.

Voltando ao final do post anterior, a perplexidade resignada está pelo perceber da inevitabilidade da subsidiação do aborto. Ainda me lembro do tempo em que me diziam: «Tu és homem, não tens direito a dizer uma única palavra sobre o aborto. É apenas uma questão das mulheres.» É difícil conciliar esta exclusividade feminina com o pedido de responsabilização colectiva inerente à subsidiação do aborto. Ou não, porque o «duplo-pensar» orweliano é cada vez mais prática comum.

Quem condena a utilização do dinheiro recolhido de forma coerciva, via impostos, para financiar os impostos, é logo acusado de «economicismo». Mas não será também economicista uma medida que determinada de forma administrativa desvio de fundos de um ponto A para um ponto B (A: contribuintes B: clínicas de aborto)? Percebo que o adjectivo «economicista» seja utilizado com outro sentido, como aquilo que até pode ter alguma validade em termos estritamente económicos mas não tem em conta critérios éticos. É bem sabido que isto não passa de uma estratégia para a manutenção de decisões irracionais. Os resultados estabelecidos pela ciência económica devem ser sempre tidos em conta, da mesma forma que se devem ter em conta os resultados estabelecidos pela biologia ou pela física, por exemplo. Mas o conhecimento obtido pelas ciências não encaminha as decisões num único sentido já que estas podem até contrariar, em certa medida, a “evolução natural das coisas”. Mas é preciso ter sempre em conta todos custos (em termos latos) associados.

Mas a contestação à subsidação do aborto nem sequer é motivada por algumas contas que se possam ter feito com um objectivo de poupar alguns euros. Isto começa logo por conceber a avaliação económica de forma bastante restrita e imprecisa. Ainda dentro da economia, poder-se-ia fazer um raciocínio mais elaborado baseado no custo de oportunidade. Para simplificar, comparar-se-iam os custos estimados para o aborto com outras alternativas, que se deixariam de fazer, dentro da área da saúde (aqui está a simplificação). Note-se que os resultados dados por esta análise económica não ditam, por si só, qual a decisão a tomar. O que fazem é esclarecer a situação e evidenciar as várias alternativas disponíveis, sabendo à partida que nem todas podem ser escolhidas.
(Cont.)
MC
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quinta-feira, janeiro 18, 2007

Aborto e Referendo (III)

Fui à procura da pergunta do último referendo, pensando ser substancialmente diferente da actual, mas descobri que, com a diferença de uma vírgula que não altera nada de importante, trata-se da mesma questão:

"Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?"

Contudo, o fulcro da discussão civilizada tem sido bastante diferente desta vez. As diferenças estarão, portanto, na alteração das consciências. Penso que o nível do debate baixou consideravelmente pelas seguintes razões:

- O aborto é cada vez mais visto como algo normal e quase sem carga negativa. Note-se que isto não tem nada a ver com uma tomada de posição a favor ou contra a despenalização da IVG. É perfeitamente possível ser a favor da despenalização da IVG, mas nem por isso deixar de considerar o aborto algo horrível.

- No debate actual praticamente anulou-se o binómio liberdade / responsabilidade. Enganam-se aqueles que dizem que não se pode ter liberdade sem responsabilidade, pelos vistos. Quando os argumentos sobre a responsabilidade dos pais na geração de um novo ser são liminarmente rejeitados face ao valor da liberdade da mulher, então coloca-se ao mesmo nível uma gravidez resultante de uma violação e uma gravidez normal.

- A banalização do aborto é levada ao extremo quando deixa de ser uma ilegalidade e passa a ser um acto subsidiado. Quando algumas pessoas começaram a interrogar-se se uma das consequências da vitória do “Sim” não seria a subsidiação estatal do aborto, foram logo acusadas de demagogia (mesmo quando à partida possam ter mostrado uma posição completamente favorável à despenalização da IGV) e de estarem a levantar um assunto que não estava em causa no referendo. Passadas poucas semanas, o assunto “que não estava em cima da mesa” já foi contabilizado pelo ministro da saúde em vários milhões de euros.

Este último exemplo mostra até que ponto a liberdade e a democracia são coisas frágeis e as medidas mais aberrantes são postas como inevitabilidades, com uma fraca contestação em relação aos apoios que recebem. Aqueles que insultaram quem se atreveu a levantar a dúvida sobre a subsidiação do aborto, num repente tornaram-se nos seus maiores apoiantes. Há aqui a coerência do socialismo totalitário, que acha que tudo o que deixa de ser proibido passa a ser obrigatoriamente subsidiado.

(Cont.)
MC
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Aborto e Referendo (II)

É curioso que já ninguém se lembra do último referendo sobre o aborto. É arriscado discorrer sobre algo já passado há alguns anos, quando a memória é hábil em nos pregar partidas. Contudo, com alguma segurança posso avançar algumas considerações. Recordo logo que no último referendo ninguém falava em aborto mas sim em Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG). Este descritivo alongado foi depois parodiado para “interrupção voluntária do pensamento” para descrever a atitude de boa parte da esquerda em relação a quase tudo. O pudor em falar em “aborto” era uma atitude geral, mas mais importante que isso era a necessidade que todos tinham em evidenciar que a IVG era uma coisa horrível. A postura de defender a soberania da mulher em relação ao próprio corpo era minoritária e sobretudo defendida pelos simpatizantes do Bloco de Esquerda (curiosamente, Francisco Louçã era a favor do referendo quando existia uma maioria de “direita” no parlamento e contra quando a maioria está à esquerda).

Quem defendia a despenalização da IVG argumentava que essa era a forma mais eficaz de diminuir o número de abortos e também a única maneira de resolver o problema de saúde pública que é o aborto clandestino. Perante isto, partidários de ambos os lados chegaram, por várias vezes, em declarar uma firme intenção em trabalhar em prol da diminuição dos abortos, na ajuda a mães solteiras, na educação sexual, facilitar a adopção, etc., qualquer que fosse o resultado do referendo. Na altura ainda era jovem e, de forma ingénua, acreditei. Os anos passaram e nada do que foi prometido foi realizado. Aprendi assim que os seres humanos gostam de uma boa discussão pela própria discussão em si, pela excitação de estar num lado da barricada e terem uns sujeitos para insultar no outro lado, e os argumentos que utilizam visam apenas ganhar alguma vantagem imediata. Pior que isso, o ser humano tem a terrível característica, só contrariada por muito poucos, de entrar num processo de irracionalidade, mentira e golpes baixos mas ainda assim manter a profunda convicção que está a agir de forma exemplar. Terminada a “batalha”, os indivíduos não se lembram de nada do que prometeram, apenas recordam a postura execrável dos partidários do outro lado e esperam ansiosamente pelo próximo confronto.
MC
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quarta-feira, janeiro 17, 2007

Aborto e Referendo (I)

Para já vou esquecer o que possivelmente está em causa no referendo, mantendo-me apenas na questão de fundo. São várias as razões, e cada uma com o seu enquadramento, que justificam ou condenam o aborto. Não as conheço todas, mas a minha apreciação é que todas se vão rebatendo e, por conseguinte, anulando, até que apenas duas ficam de pé. Uma contra, outra “a favor”, mas é curioso que ambas não são um grande prodígio da inteligência mas limitam-se a transcrever o comportamento que as pessoas comuns têm face a esta questão. Para esta discussão excluo, por simplicidade, os casos excepcionais de doença, violação e também análises a longo prazo.

Do meu ponto de vista, o principal argumento contra o aborto tem a ver com a responsabilidade face ao valor da vida. Vamos supor um casal que se vê confrontado com uma gravidez imprevista. Ao levar por diante a gravidez, o casal vê-se forçado a abdicar de vários planos de vida que tinha. A hipótese de abortar é cómoda, quer por um simples medicamento, quer com uma ida a Espanha no caso de se tratar de uma gravidez mais avançada ou mesmo recorrendo aos célebres “vãos de escada”. Mesmo assim, a gravidez é levada por diante. Todos conhecem casos como este, de filhos que levam como alcunha o “Descuido”. A gravidez não é levada para a frente não por receio de penalizações legais mas, antes, pelo assumir de responsabilidades. Depois disso a gravidez passa a ser desejada, por regra.

Dizer que se trata de um “assumir de responsabilidades face ao valor da vida”, não implica que o casal (ou a mulher apenas) tenha elaborado um raciocínio complexo sobre o que é a responsabilidade individual, o valor da vida ou quando ela se inicia. O casal pode não saber o que diz a ciência e a lei sobre o estatuto do feto e do embrião, se já são vida humana ou se já merecem ser preservados. Sabem, antes, que se tudo correr normalmente irá existir mais um ser humano e sabem que apenas eles e mais ninguém, são responsáveis por isso. O peso destas constatações óbvias leva a que a gravidez imprevista seja levada até ao seu fim natural.

O argumento que penso melhor defender o aborto ou, de forma mais precisa, que o compreende sem o julgar, tem a ver com a crueza da relação entre a mãe e feto e da total dependência deste último em relação à primeira. O ponto é normalmente suavizado com alguma abstracção quando se recorre à defesa da liberdade das mulheres sobre o seu próprio corpo. Mas o cerne da questão penso ser a própria aversão que a mulher pode ganhar ao ser que se desenvolve no seu interior. Essa aversão pode se dever a motivos fúteis ou a outros bem justificados ou mesmo não ter razões aparentes, não é realmente importante já que ninguém conseguirá avaliar correctamente.

Mais uma vez, numa situação destas a maior parte das pessoas não irá elaborar considerações filosóficas de grande calibre. Ao ter conhecimento da realização de um aborto, não passa pela cabeça de quase ninguém fazer a sua denúncia. E neste caso particular não será por cobardia, mas por perceber que não é moralmente correcto exigir que uma mulher leve até ao fim uma gravidez se isso constitui para ela uma violação do próprio corpo e da alma, ao ponto de poder levar, em casos extremos, ao suicídio. Há também a questão prática em provar que ocorreu mesmo um aborto provocado e não um espontâneo, ou até mesmo que chegou a existir alguma gravidez. Se hoje em dia seria fácil apanhar inúmeras “abortadeiras” cometendo o acto, isso deve-se apenas à tradição em não punir o acto apesar do que diz a lei. Caso existisse uma tentativa séria de perseguição ao aborto ilegal, este seria realizado de forma muito mais reservada e engenhosa. Pelo que se pode juntar mais uma razão para aceitar o aborto, precisamente o da impotência em conseguir impedi-lo.

Os argumentos aqui avançados poderão parecer pouco sofisticados face àquilo que se pode ler na maior parte dos blogs sobre este assunto. Mais desalentador será a ausência de uma argumentação de barricada. A dificuldade em conviver com dilemas morais evidencia-se precisamente na tomada de posição.

MC
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sexta-feira, janeiro 12, 2007

Notas sobre Guantánamo e Cavaco Silva na Índia

Ouvi na rádio uma senhora, membro de uma associação que pretensamente defende os direitos humanos (Amnistia Internacional?), pedir o encerramento imediato da prisão de Guantánamo. Não se percebe, com tantas prisões em Cuba, exigem logo que seja encerrada a que melhores condições oferece aos prisioneiros. E já agora, pediram a quem? A George W. Bush em pessoa? Dirigiram-se à embaixada americana? Pediram aos deuses? É óbvio que não esperam quaisquer resultados práticos nestas acções, a não ser algum protagonismo mediático e, eventualmente, conforto emocional, do género “Apesar de não ter servido de nada, eu pelo menos posso orgulhar-me de dizer que lutei contra aquela injustiça!”

Toda esta bravata de bater o pé aos poderosos advém, precisamente, da completa inconsequência em relação aos supostos fins. Soubessem estas pessoas que os seus pedidos seriam satisfeitos e teriam muito mais cuidado em os formular. Pelo pouco que sei, “Guantánamo” é um imbróglio jurídico que se pode pegar de várias formas. Mas há uma questão prática que todos fingem ignorar. A maior parte dos detidos nesta prisão são indivíduos muito perigosos que, se libertos, irão matar o mais que puderem. Aqueles que gostam de ter os louros pela defesa dos “direitos humanos”, estão dispostos a assumir as responsabilidades pelas consequências nefastas que daí possam advir? Se não estão e limitam-se a tentar ficar com a parte fácil da questão, também não merecem ser respeitados. Também não mereciam ser ouvidos mas infelizmente são os únicos que o são.

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Cavaco Silva está na Índia. Soube que há 15 anos que não era feita uma visita de estado a este país. Dizem que estas visitas são pouco mais que irrelevantes, mas se há uma local que merece destaque nesta altura é precisamente a Índia. Para a esmagadora maioria dos portugueses, Índia não faz lembrar mais que o caril, as chamuças e os “Qué Frô?”. É frequente aparecerem breves notícias na comunicação social falando do grande crescimento económico indiano, mas isso são coisas “economicistas” que os comentadores iluminados nos ensinam a ter aversão. Face a este estado de ignorância militante, junto com a apatia laboral lusa, a maior parte de nós não é capaz de conceber a dinâmica que hoje se vive na Índia, especialmente em zonas como Bangalore.

Alguns líderes de opinião tentam logo prevenir contra a ilusão do milagre indiano, alertando para os desequilíbrios sociais. Têm toda a razão, já que durante as décadas anteriores em que a Índia se regeu pelos modelos socialistas, a pobreza geral daí recorrente garantia uma saudável igualdade. Recomendo o livro “O Mundo é Plano – Uma História Breve do Século XXI”, de Thomas L. Friedman, que se pode encontrar em qualquer livraria. Trata-se sobretudo de informação factual, muita dela que ia surpreendendo o próprio autor, em que se pode ter uma ideia do que se vive actualmente nas potências emergentes como a Índia e a China.

Uma pequena história, reescrita aqui de memória, contraria um pouco a noção de que “A necessidade aguça o engenho”. Uma criança indiana passa na rua com o pai. Avistam no cimo do monte uma casa enorme. «Quando me tornar adulto hei-de ter uma casa como aquela», diz a criança. Se a mesma cena se passasse com uma família paquistanesa, a criança diria antes: «Quando crescer hei-de matar o dono daquela casa.» A sociedade europeia não corresponde a nenhum destes dois casos, mas receio que se encontre bem mais próximo do segundo. Não se admirem que daqui a 20 anos seja comum na Índia as empregadas de limpeza, os jardineiros e motoristas de táxi serem franceses, italianos e, com alguma sorte, portugueses.
MC
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sexta-feira, janeiro 05, 2007

A morte de Sadham Hussein

Devo confessar algum espanto face às reacções à execução de Sadham Hussein. Esperava algumas manifestações de repúdio mas não o esboço da formação de um movimento global contra a Pena de Morte (PM). A discussão à volta da PM não é tão linear e definitiva como se quer fazer crer. Contudo, se há um argumento que desequilibra, de forma definitiva, o debate a favor do lado que se opõe à PM é que esta pode executar inocentes e não há forma de reparar situação. Precisamente este é o argumento que ninguém se atreve a avançar para defender o antigo ditador iraquiano.

Há também alguma nébula nas justificações avançadas por aqueles que se insurgem contra a PM neste caso, porque pretendem que a sua argumentação tenha o peso dos «princípios» mas socorrem-se sobretudo ao raciocínio típico da “realpolitik”. A confusão ainda é maior porque se a “realpolitik” não tem em conta as «ilusões sentimentais», esta deferência por Sadham Hussein parece ser uma escolha eminentemente emocional, já que a execução de outros antigos dirigentes do regime iraquiano, apenas alguns dias antes, passou completamente despercebida.

Criou-se, quase de forma instantânea, mais um «imperativo moral» do politicamente correcto. Mais uma vez todos se acotovelam para defender o “lado certo da História” e ficar na fotografia do grupo que se opôs à PM aplicada a Sadham Hussein. Para alguns, catarse emocional, para outros, mero oportunismo, mas em ambos os casos a oposição à PM e a defesa do valor da vida não saem dignificados. Não é menos que sórdido quando a indignação pela execução de um ditador é incomparavelmente maior que a indignação que existiu pela morte de dezenas de milhares de pessoas que ele provocou.

Sobre a PM neste blog:
MC
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segunda-feira, janeiro 01, 2007

Confiança em 2007

Estamos na época de fazer vaticínios irrealistas, por isso vou dar o meu contributo.

Que 2007 seja um ano em que os portugueses tenham muita confiança em si mesmos!

Confiança não é apenas um acreditar, implica também ter objectivos e projectos para os levar a cabo. Uma confiança generalizada será alcançada quando forem resolvidos os problemas gerais, bem como os particulares. Em ambos os casos os portugueses irão pedir a intervenção do Estado. E em ambos os casos o Estado irá tentar intervir, quem sabe com a prestimosa ajuda da União Europeia, que nos tira as favas do bolo-rei e certamente continuará na sua cruzada para a nossa felicidade, legislando sobre a nossa forma de comer, vestir, pensar, falar.

Em 2007 os portugueses continuarão a achar que a confiança deve-se unicamente a “agentes exógenos” e quanto mais a perderem mais cederão no avanço do totalitarismo democrático. Por isso, 2007 será apenas mais um ano em que “confiança” será sinónimo de fé irracional num salvador.

MC
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