sexta-feira, janeiro 26, 2007

Pequenos Portugueses

Já fiz uma apreciação do programa “Grandes Portugueses” em termos mais suaves aqui. Entre os 10 finalistas, todas grandes figuras mas apenas alguns grandes homens, constam várias personagens autoritárias. O autoritarismo de D. João II ou Vasco da Gama serão compreensíveis para a época em que viveram. Bem mais preocupante é a inclusão de 3 figuras mais recentes: O Marquês de Pombal, Salazar e Álvaro Cunhal. O defensor do Marquês de Pombal disse, ressalvando algum erro de memória, que esta personagem teve que enfrentar as resistências à mudança daquela época e só não conseguiu impor um capitalismo a sério em Portugal. Por isso, ainda hoje se chama Terreiro do Paço à Praça do Comércio, apesar da mudança de nome decretada por Pombal.

A figura do Marquês é complexa, como todas as outras, aliás, e vou ater-me apenas a este ponto. Ao contrário do que muitos possam pensar, o autoritarismo e o capitalismo (não os capitalistas, mas isso é outro post) não têm uma convivência natural. O capitalismo requer liberdade de troca mas também responsabilidade e para isso é necessário algum tipo de autoridade. Contudo, a autoridade, só por si, não cria capitalismo algum, especialmente se for um autoritarismo que todos paralisa através do terror. É um contra-senso impor o capitalismo, o máximo que se pode fazer e deixá-lo acontecer.

A inclusão de Salazar na lista dos 10 mais é incómoda para muitos. Mas pode ser uma oportunidade para matar alguns fantasmas. Até arrisco dizer que esta sobrevalorização de Salazar é mais uma das consequências inesperadas das “conquistas de Abril”, vejamos porquê. Os que reclamam os louros de ter feito o 25 Abril acontecer, especialmente se tiveram um passado de luta “anti-fascista”, têm pouca obra para mostrar. A liberdade que hoje temos não é a mesma liberdade que nos queriam impor. A maior riqueza que hoje desfrutamos não advém das suas políticas mas precisamente daquelas a que sempre se opuseram. Mesmo o Estado Social é obra do regime anterior, pela mão de Marcello Caetano. As próprias conquistas de direitos e regalias para os trabalhadores, reclamadas pelos sindicatos abrilistas, são meras ficções. Elas são a consequência do crescimento económico e não da berraria sindicalista.

Face a isto, o que têm os “heróis de Abril” para oferecer? Apenas um peito inchado para cantar as fábulas em que eles mesmo são os heróis que lutaram contra a besta fascista. O resultado é que quase 5 décadas do anterior regime foram resumidas em poucos slogans. Criou-se um interdito que, estranhamente, conseguiu beneficiar tanto Salazar como Cunhal. Salazar é beneficiado porque não é banalizado e quem não o identifica com o mal absoluto poderá ter a tendência para lhe ver um brilho especial, uma aura de salvador. Fosse visto tal como ele é, sem complexos de esquerda, dificilmente Salazar entraria nos 100 mais.

Salazar e Cunhal foram tanto adversários como aliados. É difícil saber se a sua aliança chegou a ser intencional ou mesmo consciente mas, dado tratarem-se de duas pessoas inegavelmente inteligentes, não se pode afastar qualquer uma das possibilidades. A Salazar interessava manter o regime e para isso ajudou a existência controlada de um Partido Comunista como uma ameaça sempre latente, mesmo que irrealista. Não que a estratégia de manutenção do Estado Novo dependesse apenas da sugestão da ameaça comunista, nem digo que fosse pedra fundamental. Mas quem queira conhecer a realidade deste país não pode esquecer que muitas pessoas, que nada admiravam o Estado Novo, nunca contra ele se mobilizaram dado o que sabiam dos acontecimentos dos regimes comunistas.

A Cunhal interessava a implementação do comunismo em Portugal e não propriamente o derrube do regime. Note-se que, ao contrário de outros partidos comunistas na Europa, o português nunca teve intenção de levar para a frente o socialismo pela via democrática. O derrube do Estado Novo apenas mediante determinadas condições poderia abrir caminho para a tomada de poder pelos comunistas, tinha de ser na altura certa e da forma apropriada. Mais facilmente a derrocada do salazarismo poderia dar lugar a outra ditadura reaccionária que, quase certamente, iria perseguir o comunismo de forma muito mais feroz. O que os comunistas esperavam não era a oportunidade que a democracia lhes iria dar para se afirmarem. A sua rede de influência já estava consolidada mesmo no Estado Novo, o que esperavam era o momento de transição, em que a indefinição do momento lhes abrisse caminho para a tomada do poder. E nessa transição confiavam no apoio internacional do bloco soviético, que dificilmente iria ocorrer antes num pais membro da NATO.

As votações em Cunhal e Salazar, bem como no Marquês de Pombal, pouco têm em conta estas disposições estratégicas. Representam o poder, a vontade, mesmo a teimosia e a crueldade. Todos, à sua maneira, pretenderam reencarnar D. Sebastião, não o verdadeiro, obviamente, mas o ideal, o omnipresente, a referência única, o salvador. Foram, provavelmente, os três portugueses que mais danos causaram ao país.
MC
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