sexta-feira, março 31, 2006

As mil e uma medidas de Sócrates

Na comemoração do primeiro aniversário, o governo brinda-nos com o anúncio de mais uma série de medidas. À cabeça, o Simplex e a reforma do Estado são os dois clusters principais. Há dois aspectos a avaliar, a essência das medidas e os aspectos comunicacionais.

A simplificação dos processos burocráticos, que já tinha sido antes iniciada por este governo, é sempre de aplaudir. Há que ver se a implementação será célere e eficaz e se corresponde às reais necessidades dos diversos agentes. Os domínios são vários e não tenho meios para avaliar da pertinência das simplificações anunciadas. Contudo, em muitos sistemas a limitação costuma ser o pior elemento da cadeia. E de pouco servirá uma simplificação cega que não fixe a sua atenção nos procedimentos mais morosos e que originam mais constrangimentos. A rapidez com que se anunciaram centenas de medidas faz temer que se possam ter optado por uma simplificação ligeira, focando nos aspectos aberrantes mas sem ir àquilo que realmente interessa. Espero que não tenha sido inteiramente assim e há que ter alguma esperança.

A reforma do Estado leva-nos directamente ao aspectos comunicacionais, porque o que foi anunciado, de extinção de quase 200 institutos públicos e um mapa único para os vários serviços dependentes dos vários ministérios em 5 regiões, mais não é que um prolongamento do Simplex. Não existe reforma do Estado enquanto o Estado ainda faz exactamente o mesmo que anteriormente, se bem que de forma diferente. António Costa já tinha anunciado que este governo tinha uma visão moderna do Estado, onde se iriam racionalizar as suas funções e abandonar algumas. Se o fizer, talvez se possa anunciar que temos a reforma do século, mas não apenas com este Simplex Plus.

Ao contrário dos governos teoricamente mais à direita, esta governação PS tem uma grande eficácia comunicativa. As mesmas medidas numa coligação de direita seriam imediatamente condenadas de fascistas, lesivas dos interesses dos trabalhadores, etc. Facilita bastante o trabalho do governo e a própria aplicação das medidas, quando elas passam bem na opinião pública. Mesmo quando determinados sectores se manifestam contra determinadas opções, o resto da opinião pública está em maior ou menor grau com o governo. Não é que seja apenas mérito deste governo, mas também um resultado de uma maior consciência que foi sendo ganha nos últimos anos, quando se percebeu que a situação era pior do que se julgava e eram necessárias medidas duras.

Outro aspecto positivo foi que este ímpeto do governo secou o Bloco de Esquerda. Habituados a serem os líderes da oposição, que marcavam a agenda mediática, com presença cativa em qualquer debate fosse em que meio fosse, o Bloco entra agora numa travessia do deserto. Lembro-me quando Sócrates disse em entrevista na TV que não se resignava que os jovens estivesse condenados a ficar reféns das propostas do Bloco de Esquerda (as palavras exactas não foram estas). Secar a verve bloquista também facilita enormemente a acção do governo, que não se vê, assim, obrigado a jogar sempre à defensiva. Será antes a extrema-esquerda a lutar pela sua salvação. Os comunistas dão mostras de voltar a um discurso ainda mais anacrónico, o que me parece um admitir da derrota, depois de ainda terem esperanças face aos bons resultados de Jerónimo de Sousa.

Finalmente e não menos importante, a comunicação do governo é manifestamente exagerada e demagógica, os números redondos, as reformulas do século, etc. Nos tempos que correm isso até é um mal menor. Tanto o cidadão comum como os outros agentes económicos, quer estejam mais ou menos crentes naquilo que o governo anuncia fazer, preferem esperar para ver. O governo é como qualquer supermercado, com publicidade aparatosa mas depois cada consumidor terá que perceber se o produto é tão bom como lhe querem fazer crer. O facto do governo não poder dizer toda a verdade, porque a vida lhe seria impossível, será um problema nacional sem solução? De qualquer forma, a pior forma de um governo enganar as pessoas nem está, hoje em dia, naquilo que ele diz mas em medidas concretas que subsidiam situações insustentáveis. Nesses casos, os agentes económicos tomam decisões irracionais porque o Estado lhes mascara a realidade.
MC
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sexta-feira, março 24, 2006

O canto da ETA e a direita imaginária

ETA OU UMA BALADA POR IVAN NUNES

No choque ideológico de quarta-feira, quase posso jurar, Ivan Nunes não evitou que os seus olhos brilhassem ao falar num suposto abandono da violência por parte da ETA. Confesso que tinha um certo preconceito contra tal senhor. Raramente li o seu blog, mas a sua postura inicial de espera no programa, enquanto o Carlos Abreu Amorim (CAA) falava, pareceu-me de uma arrogância, de quem diz para si mesmo «mas o que estou eu aqui a fazer, a espalhar a minha sapiência e superioridade a todos os níveis, para porcos que nunca saberão apreciar as minhas pérolas?» Pior que isso foi saber que o homem é sociólogo. Mas realmente repugnante foi quando Ivan Nunes deixou estalar o verniz e disse algo a CAA do género «você não é dono da memória das vítimas», por este se mostrar céptico em relação ao comunicado da ETA.

Eu que até conheço muita gente de esquerda, não me deixo enganar por poses de superioridade moral, porque sei bem o que eles dizem quando não estão à frente das câmaras. Falo da esquerda mais ideológica, que tem um profundo fascínio pela violência. Não uma violência qualquer, claro, mas a violência que soa a revolução, que se possa enquadrar na ideologia, talvez ser chamada de resistência, por exemplo. E a miríade de associações de extrema-esquerda que por aí pululam não hesitam a convidar etarras para dar palestras (obviamente que não se identificam oficialmente como tal, mas sim apenas como defensores de uma maior autonomia do Pais Basco), fazendo disso uma prova de virilidade revolucionária.

Há ainda quem se deixe enganar por achar que a esquerda é naturalmente confiante em relação à natureza humana e, por isso parecem acreditar tão facilmente nas loas de grupos terroristas. Pelo contrário, a esquerda ideológica (excluo a esquerda democrática, obviamente), no fundo, acredita sim na negritude da alma humana, porque só essa veia destrutiva possibilita as revoluções que almejam. A alegria que certa esquerda mostra no canto da ETA, é como uma desculpa. É como quem diz, vejam lá que estes rapazes no fim até fizeram uma boa acção e, por isso, aquele apoio implícito que lhes demos durante tantos anos até se justificou.


A CONSTRUÇÃO DA NOVA DIREITA

É mentira, para abreviar, mas vamos por partes. Anda por aí um movimento que anuncia uma nova direita para Portugal. Parece que vai ter contornos liberais, porque finalmente o país está mais receptivo a tais ideias. Mais que isso, os seus paladinos afirmam-nos que só a direita pode trazer liberalismo a Portugal. Daqui a afirmar que o liberalismo é propriedade da direita vai um passo. Em termos práticos, pensar que há matéria-prima na direita para esta empreitada parece-me ilusório. Umas quantas figurinhas menores, sem carisma e com a lição mal estudada, não me parecem que conseguirão grande coisa. Depois disso, o actual governo PS é mais liberal do que a oposição de direita.

Há também um problema de fundo. Apesar de em geral os governos de direita serem apologistas de um peso do Estado menor que aquele que defendem governos de esquerda, a diferença não é significativa. E são conhecidos inúmeros casos em que a esquerda diminui o Estado e a direita aumenta-o. Porque os grandes partidos da esquerda e da direita, para ganharem eleições e para terem o aparelho partidário satisfeito, fazem os seus programas de acordo com o sabor do vento e das conveniências. Aumentar ou diminuir o peso do Estado, aumentar ou diminuir impostos, aumentar ou diminuir o proteccionismo, aumentar ou diminuir a burocracia? Esquerda ou direita podem optar por ambas as opções, como vemos todos os dias.

O perigo para a causa liberal desta tentativa de rapto por uma certa direita não deve ser desprezado. Um projecto de “direita liberal” tem em meta a obtenção de poder e, implicitamente, a concessão de inúmeras práticas não liberais para obter esse mesmo poder. A ilusão de que o poder nas mãos dos “liberais” é bem conduzido não é muito diferente da ilusão dos comunistas que acham que o poder dos seus conduzirá a uma sociedade perfeita.
MC
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sexta-feira, março 17, 2006

Uma semana, um post

A partir de hoje este blog passa a ter uma actualização semanal, excepto posts ocasionais que justifiquem maior urgência. Esta colocação semanal adapta-se melhor à disponibilidade existente em comentar os assuntos pelos quais o blog adestra.

UM ANO DE GOVERNO

Esta avaliação será curta, porque não sou aquilo que se pode chamar de observador atento. As duas marcas imprimidas por Sócrates são o pragmatismo e a determinação. Não são características necessariamente positivas. O pragmatismo está em utilizar os meios mais directos para atingir os fins esperados. Isso incluiu a mentira descarada e as promessas irrealistas para ganhar eleições, e a criação constante de factos para manter a popularidade. É o lado sujo da política, mas duvido que actualmente se possa viver sem ele.

Mas é na determinação do governo que se pode atestar quais as suas ideias concretas. Determinação para os disparates da OTA e do TGV. Determinação para casos complicados como a co-incineração. Mas também determinação em algumas medidas positivas, de desburocratização, de redução do peso do Estado, de uma maior contenção nos custos, no aumento da idade da reforma. Tem havido alguma coragem em enfrentar os interesses instalados, mas quase tudo ainda são intenções declaradas longe da fase da implementação. É preciso esperar para ver.

Pela primeira vez em Portugal, existe um governo de esquerda que é realmente moderado. Sócrates acredita no estado social e no investimento público, nisso não enganou ninguém. Mas há também a consciência que o modelo social actual é insustentável e há que tomar medidas para evitar o seu colapso, como aumentar a idade da reforma, permitir uma maior colaboração dos privados e racionalizar as funções do estado. Pode não ser um sonho de um liberal, mas a direita actual nunca deu mostras de poder ir mais longe. A questão dos investimentos públicos é mais delicada. O governo tenta agradar a todos, por um lado aos estatistas afirmando que é necessário o investimento estatal para estimular a economia, mas também aos mais liberais, recorrendo ao argumento que o maior parte do investimento virá de privados. Contudo, é quase certo que este investimento privado terá uma cobertura semi-oculta por parte do Estado, que garanta que o investimento será sempre rentável. Para além do investimento estatal não contemplar o custo de oportunidade, há sempre o problema das derrapagens, que costumam ser astronómicas por cá.

Por último, há ainda um grande mérito deste governo em ter construído uma imagem de credibilidade em pouco tempo, não só aos olhos do eleitor distraído mas também de observadores mais atentos. Não é uma questão meramente racional, mas de um clima que se cria. Recordemos que o PS ganhou as eleições mais por demérito dos adversários do que por mérito próprio. Depois, neste governo está alguma da “tralha guterrista”, que foi entretanto reabilitada. Nos meses iniciais, as trapalhadas do governo foram tantas que eclipsaram as do governo de Santana. Mas uma maioria absoluta, comunicação social benévola, sindicatos acanhados, ecologistas adormecidos, governo com uma comunicação eficaz e, ainda, uma Presidente da República que é a alma gémea do Primeiro-Ministro, fizeram com que o governo pareça credível. Mesmo um caso aberrante com Freitas do Amaral deve ser visto com cuidado. Aqueles que esperam ansiosamente pela sua demissão, é bom que tenham paciência, porque estão a esquecer da popularidade que este ministro tem actualmente.


JOVENS EM PROTESTO

Novo Maio de 68 em França. Já o outro foi um flop, porque quem foi alvo dos protestos acabou por ganhar as eleições. Aparentemente, é uma nova lei, que visa a facilitar os despedimentos nos 2 primeiros anos, que está a ser a causa de toda uma série de protestos por parte dos jovens. A medida visa o combate ao desemprego nos jovens, claramente mais alto do que nas faixas etárias superiores. A lógica é simples, se os empregadores não puderem despedir, preferem não contratar ou contratar trabalhadores mais velhos que possam dar mais garantias. Entende-se que muitos jovens possam ficar apreensivos e têm o direito em protestar, apesar não de forma destrutiva. São dois anos de insegurança, onde não é possível fazer planos mais alargados. Por outro lado, a lei não garante que os melhores terão emprego. Muitos incompetentes espertalhaços safam-se sempre e roubam o lugar a quem “merece”. Além disso, trata-se de uma medida discriminatória.

Contudo, terá um governo legitimidade para tomar tal medida? Penso que a questão é inversa. Onde não houve legitimidade foi em criar uma estabilidade artificial. O estado comporta-se como mãe e pai de todos. É natural que os meninos mimados façam birra. Sendo a França a pátria espiritual do estatismo democrático, estas reacções são bastante naturais. Que os protestos tenham excedido largamente o que seria legítimo, parece não incomodar ninguém. Ao invés, há que tentar encontrar uma desculpa legítima para isso, como se faz também para o terrorismo. O resultado é que a irresponsabilidade é estimulada, e quem quer contratar um irresponsável? O mais caricato é que aqueles que protestam desta forma, dizendo que a lei é injusta, só têm conseguido provar o contrário.
MC
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terça-feira, março 14, 2006

Prós e Contras – Rescaldo psicológico

Este programa é um bom barómetro para avaliar o nível médio do debate que um cidadão mediano é capaz de engolir. O último programa, referente ao 1º ano do governo em funções, teve alguns aspectos interessantes de avaliar. O que parecem ser tendências positivas ou negativas podem ser sinais enganadores e é preciso avaliá-los com cuidado. Por um lado, parece positivo que o cidadão médio tenha entranhado ideias como a do Estado não criar riqueza, a subida de impostos prejudicar a economia e que a redução do défice dever ser feita pelo lado da despesa e não confiando apenas no aumento da receita.

Contudo, o aplauso ao discurso demente de Carlos Carvalhas parece deitar tudo isto por terra. Carvalhas falou nos escandalosos lucros da banca e chegou mesmo a dizer que andamos todos a trabalhar para esta gente ignóbil. A eficácia deste tipo de comentário baseia-se num erro de base mas também num apelo emocional. O erro de base é supor que a economia é um jogo de soma nula e, como tal, se uns tiveram lucros é porque outros tiveram que os “ajudar”. Ajuda a consolidar este erro descrever o mercado essencialmente como uma competição permanente. E em competição pura, inspirada no modelo desportivo, ganha-se, perde-se ou empata-se (o que está mais perto da derrota do que da vitória). Mas o mercado é também cooperação. De forma mais correcta, o mercado é o “local” onde os diversos agentes competem entre si para obter uma maior quota de cooperação.

Mas ainda mais caricato é não querer ver que o lucro pode dever-se ao mérito de ter feito melhor, de ter gasto menos para oferecer o mesmo, de ter reduzido o desperdício. É realmente trágico que o desperdício do Estado não mereça grandes críticas mas o seu combate pelos privados sim.

Carvalhas também foi eficaz devido ao seu apelo emocional implícito. Apelo à inveja, aos sentimentos baixos que não querem ver os outros estarem melhor que nós. É curioso serem aqueles que justificam toda a sua acção na defesa dos pobres estarem realmente motivados contra os ricos.

Face a estas constatações contraditórias, chego à conclusão que a opinião popular não se baseia minimamente na razão. Pelo menos, a racionalidade não é levada às últimas consequências, o que conduziria a uma avaliação das contradições. A evidente contradição em achar que devem ser os privados e não o Estado a criar riqueza e, ao mesmo tempo, achar muito mal o aumento dos lucros de alguns privados. O esforço a fazer é repetir tantas vezes as mesmas ideias que elas passam a ser naturais para as pessoas, mesmo que não sejam minimamente apreendidas.

Mas aquilo que digo em relação ao indivíduo mediano é também válido para a esmagadora maioria dos intelectuais. Eu diria mesmo que no caso dos intelectuais ainda é mais difícil o diálogo racional. Estes, para além de emocionalmente serem tão susceptíveis como qualquer mortal e de caírem também nos mesmos erros base, são frequentemente de uma arrogância extrema. Se apanhados em contradição nas suas próprias ideias ou com os factos, ao invés de tentarem procurar a sua resolução (o que poderá implicar abandonar algumas convicções), preferem uma fuga para a frente, utilizando toda uma série de estratégias tão bem conhecidas como patéticas.
MC
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sexta-feira, março 03, 2006

Freitas, o iluminado

À primeira vista, a última intervenção de Freitas do Amaral no parlamento serviu apenas para aferirmos sobre o carácter (falta dele), honestidade (falta dela), integridade (completa ausência), gosto (mau) da referida personagem. Mas a postura de Freitas não é de quem está a colocar a cabeça no cepo, antes é a de quem se considera uma reserva moral, embrenhado em manobras diplomáticas de uma importância vital e sobre as quais deve mostrar reserva para não perderem eficácia. Porque Freitas, que seguramente só pensa no nosso bem-estar, lá deixou escapar coisas como “obter a paz”, “evitar um conflito que alguns se preparam para lançar”. A minha memória é fraca, eu sei.

Imagino eu várias coisas daqui. Freitas, na boa tradição europeia, lança esforços diplomáticos em relação ao Irão, a propósito da questão nuclear. Nada de fazer voz grossa e ameaçar com a força. Aliás, só se pode ameaçar com aquilo que se tem. Imagino, ainda, que em privado, os diplomatas iranianos se mostram bem mais abertos às negociações do que aquilo que se pode esperar ao ver o tresloucado presidente do “reino” persa. Imagino ainda, que os diplomatas europeus, acreditam mesmo nesta maior abertura iraniana. Mais que isso, que essa abertura só acontece por causa do diálogo macio europeu. Por fim, imagino que a diplomacia europeia, com Freitas à cabeça, acredita que os seus esforços estão a ser proveitosos e que não estão a ser enganados pelos amigos persas.

Esta postura “freitosa” é típica dos fracos iluminados. O fraco que se acha iluminado, que pensa que a não utilização da força é prova de sabedoria. Que nos fala paternalmente quando dizemos que é preciso fazer algo, porque eles já estão a fazer algo, dormindo pela calada com o inimigo. É também a lógica do “Se não os podes vencer…”, que só é utilizada por aqueles que não acreditam em si e pensam de forma pragmática que o melhor a fazer é suportar a decadência de forma suave. E não nos podemos esquecer que para o cobarde achar que tem razão basta-lhe aquele alívio nas costas enquanto o pau vai e vem.

MC
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