quarta-feira, setembro 22, 2004

Educação e obscurantismo

Nesta problemática da colocação dos professores há um ponto de vista que tem sido esquecido, que é o dos alunos. Tem-se o problema exterior: O que vão fazer os pais com os filhos? (parece que se trata de mercadoria.) Haverá alunos radiantes por mais uns tempos de férias e outros que estarão em situações mais complicadas. Mas esta é uma altura em que muitos alunos estarão atentos sem darem mostras disso. Atenção ao circo mediático, ministério, sindicatos, professores que choram na televisão. Disto retirarão algumas conclusões. Mesmo antes de começarem as aulas, já terá começado a educação para o obscurantismo.

Vejamos. Os alunos têm poucas referências e a escola ainda pode ser uma delas. Por cima da escola existe ministério, que os alunos vagamente se aperceberão que manda nas escolas e lhes impõe determinadas coisas. O ministério falhou gravemente (mesmo que as culpas não lhe possam ser imputadas directamente), o que quer dá a mensagem das instituições não funcionarem. Mas depois há outros elementos. Inúmeros professores aparecem em reportagens, alguns em situações complicadas, outros nem tanto. Falam de si. Raramente referem os alunos, que verão nisto uma manifestação de egoísmo.

Mas há coisas mais subtis. Muitos alunos confiam nos adultos, especialmente os que aparecem na TV, e com eles tentam aprender, mas que retirarão eles daqui? Um governo que promete e não cumpre, uma oposição que pega no ínfimo pormenor e depois o tenta fazer passar por uma calamidade (calamidade há, mas quando tudo se faz passar por calamidade perde-se a distinção entre o essencial e o acessório). Fiquei horrivelmente sensibilizado pela reacção de alguns sindicatos à comunicação da ministra em voltar ao método manual. Eles já sabiam que teria de ser assim, há muito tempo. Defendem eles que os métodos informáticos são errados por natureza? Que a informática não funciona? Não pode ser, milhares de sistemas informáticos existem lidando com problemas de muito maior envergadura por esse mundo fora sem problemas. Esta futurologia vem do tarot, de alguma bola de cristal, da interpretação das borras do café do fundo de alguma chávena? Não acredito que professores acreditem nestas coisas. Terão os sindicatos tanta segurança no falhanço da informática por terem informações seguras de sabotagem do sistema, talvez por próprios elementos de sua dependência? Ou é apenas uma declaração irresponsável, um marcar de posição numa luta de poderes entre instituições, tentando condicionar futuras decisões a seu favor?

Seja lá como for, os alunos vêm apenas pessoas fracas e mesquinhas discutirem coisas que dificilmente compreenderão. Precisamente são as pessoas ligadas à educação que dão este triste espectáculo. Que belo exemplo para os alunos...
MC
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terça-feira, setembro 21, 2004

Escândalos Nacionais – Segundo escândalo

Um ex-ministro saiu da CGD, após alguns meses em funções, com uma reforma milionária. Já li algures que em 20 anos isso corresponde a perto de 1 milhão de contos, a preços de hoje. Desconheço pormenores sobre este caso, e se a tal reforma deve-se apenas ao tempo mal passado na CGD ou se é acumulável com mais umas tantas reformas do género por outras empresas que possa passar. Será caso para fazer uma investigação da situação? Talvez, mas com que objectivo? Apenas por inveja? Ou por respeito aos dinheiros públicos, que devem ser geridos com o máximo rigor em respeito aos contribuintes? Parece lógico que deve guiar-nos esta última motivação, mas a real parece ser só a da inveja. Porque a investigação devia ser bastante mais extensa, se de facto o que está em causa é o bem comum.

Não me choca particularmente esta situação, vista em perspectiva. O que me repudia foi um acumular de situações que fui ouvindo durante décadas. Vezes sem conta fui sabendo de estórias de pessoas que tiveram a sorte de terem arranjado um tacho, algumas ganhando bastante bem, colocações sem fim muito ao sabor ritmos eleitorais. Um estado que muitos sentem como um saco sem fundo, do qual não faz mal sacar o mais que puderem, esquecendo que esta gula mais não faz do que criar um moderno sistema de escravatura, em que alguns suportam o estilo de vida de outros.

Não tenho dúvidas que certas funções do estado são imprescindíveis, e de boa vontade o meu dinheiro dos impostos para lá vai. Mas não sou parvo para não saber que talvez metade daquilo que me sai em impostos vai para coisas supérfluas, para um ócio doentio. Não é só riqueza que é digerida por funções que não precisavam ser desempenhadas pelo estado (e que mal desempenhadas são frequentemente). É também riqueza que deixa de ser criada por muitos recursos humanos que se perdem no pior que há da função pública e deixam de estar disponíveis para outros domínios bastante mais interessantes a todos os níveis.


Pensei em escrever este post já há alguns dias. No tempo que passou já ouvi mais 3 ou 4 estórias típicas da função pública. São tão banais que já não nos damos conta, já espanto não causam. Esta indiferença é que é um verdadeiro escândalo nacional.

MC

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sexta-feira, setembro 17, 2004

Escândalos nacionais – Primeiro escândalo

Fui ontem surpreendido por dois “escândalos nacionais”, de uma surpresa fantoche, como se de uma surpresa infinda se tratasse. Essas calamidades foram, na boca dos jornalistas (que depois colonizam a alma do povo), a abertura falhada do novo ano electivo e a reforma de luxo de Mira do Amaral com a saída de CGD. Este post será dedicado ao primeiro assunto.

A abertura do ano lectivo foi a confirmação de um falhanço anunciado. O próprio governo uns dias antes admitia que os professores não estariam todos colocados. Claro que os jornalistas iriam sempre ver a metade do copo que estava vazia, escolher casos particulares de escolas com professores quase todos por colocar e nunca uma em que o funcionamento estivesse em pleno. Claro que a oposição, pais e sindicatos iriam criticar. Claro que o primeiro ministro iria dizer as frases da praxe, admitir que tinham existido problemas, mas iriam apurar-se responsabilidades, tudo se iria fazer para no ano seguinte não se voltar a repetir o mesmo. Claro que nada de essencial se iria discutir...

Há aqui um falsa questão de fundo, que é o problema informático que deu origem a um transtorno enorme a pais, professores e alunos, ainda muitos com futuro incerto (suponho que ainda seja esta a desculpa oficial). Um ministério da educação de Salazar talvez tivesse um número reduzido de escolas para que fosse maleável geri-las todas centralmente. Além do mais, o pendor totalitário do regime nunca permitiria liberdades maiores a cada escola numa matéria tão sensível. Muda-se de regime mas não se perde a vontade de controlar de cima, tudo com boas intenções. Cada ministro da educação pensará ter a receita mágica para tudo.

A gestão do ministério da educação é semelhante à de muitas pequenas empresas. Nestas, é comum existir apenas um “patrão” que é responsável por tudo. Só ele tem os contactos, não passa informação relevante a ninguém, não comecem alguns também “a querer dar opinião”. Se o patrão tira férias, a empresa também. Se ausenta-se, labora-se a meio gás. Se parte uma perna a empresa fica coxa. Por razões profissionais, contactei com muitas empresas assim. É comum os funcionários não conseguirem dar uma resposta básica de sim ou não, tão amarradas que estão, parecendo amedrontados com algo. Este tipo de chefia conduz a um aprisionamento do espírito, que impede qualquer crescimento saudável da empresa.


Um ministério que assim funcione faz com que um pequeno problema central se repercuta em milhares de escolas. Não se espere que se mude as coisas de um dia para o outro. Nenhum partido quer abdicar do controlo central e nem as escolas e autarquias querem ter mais responsabilidades. As pessoas acham que não estão preparadas para a liberdade. O ministério não abdica das coisas mais básicas, acha que as escolas são incompetentes para contratar professores, incompetentes para definir critérios pedagógicos, incompetentes para fazer os seus próprios currículos. Como podem os pais confiar nas escolas se é o próprio ministério que nelas não confia?

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quinta-feira, setembro 16, 2004

Perguntas estúpidas

A culpa da baixa produtividade é dos trabalhadores ou dos patrões?

Pergunta estúpida, porque é óbvio ser de ambos. Claro que se as chefias não mobilizarem, não tiverem estratégia, por mais boa vontade que os trabalhadores tenham, nada se pode fazer. O contrário já não é bem assim. Mas como todos sabemos, mesmo com correcta estimulação e dinamização das chefias há muitos "trabalhadores" que querem mesmo é fazer o mínimo.

Mas não é só com apelos e medidas vindas de cima que conseguimos melhorar. Não falta aos portugueses capacidade de trabalho, nem temos uma excepcional falta de seriedade. Acontece que a nossa atitude cultural face ao trabalho e a todas as acções rotineiras é como se fossem uma espécie de castigo. Esta atitude tem séculos, e as velhas gerações passam às mais novas mesmo sem se aperceberem, queixando-se por tudo e por nada, falando mal dos patrões, dos colegas, das obrigações, do sofrimento, do stress, da falta de tempo...
Não existe a atitude de ver o trabalho como uma forma de progressão pessoal (apenas como progressão financeira ou elevação de estatuto, para os “felizardos”). Estas atitudes só são possíveis de implementar com uma maior consciência espiritual, que não está forçosamente ligada à religião. Espiritual no sentido de cada um ter maior consciência de si mesmo e se aperceber que a satisfação do trabalho está directamente relacionada com a qualidade do mesmo.
MC
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quarta-feira, setembro 15, 2004

As certezas da esquerda

Num país em que o liberalismo é segregado, interessa ver como militantes da esquerda apartidária vêm o país. Segundo eles:

- Bagão Félix fala como Salazar;

- Mário Soares finalmente é um tipo porreiro;

- A Espanha passou-nos à frente, apesar de terem tipos da direita no governo;

- O PS quando chegar ao governo tem de revogar todas as leis que estes criminosos aprovaram;

- O governo PS teve alguns problemas mas este governo de direita é que nos deixou de fio dental;

- Este governo obriga-nos a pagar tudo;

- Os nossos administradores ganham tanto como os melhores da Europa;

- Estamos piores do que estávamos há 20 anos atrás;

- Não acredito numa sociedade quando vejo jovens que seguem Pedro Santana Lopes;

- Não temos oposição forte, uma alternativa...


Conclusão: Devemos ser invejosos, esquecer a história, acabar com a liberdade dos que não alinham connosco, considerando-os automaticamente de mal intencionados, e não devemos assumir responsabilidades mas sim pedi-las a tudo e a todos.
MC
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O ministro falou mas ninguém quer ouvir

Bagão Félix fez uma comunicação “ao país” que, num lugar “civilizado”, seria inaceitável. Como foi em Portugal, chegou 10 ou 20 anos atrasada. Ouvi com extrema atenção as palavras do ministro, concordando, discordando, mas acima de tudo imensamente chocado pelos factos sobre o peso do estado. Não que fossem novidade, mas a cada dia que passa sinto-me escravo deste sistema, que se alimenta dos meus impostos, do meu sofrimento, e de forma despudorada os esbanja das mais diversas formas.

Mais chocante fiquei com as reacções ao discurso, por intelectuais e pessoas que se acham esclarecidas. Vivemos numa tenda improvisada mas perdemos tempos infidos a discutir a cor dos cortinados do palacete onde imaginamos viver. Se há aqueles que acham disparatado um ministro vir ensinar ao povo coisas que todos já sabem, outros mostram que nem o mais básico QUEREM entender.

Percebe-se a intenção do ministro. O anterior executivo foi acusado de não falar ao país. Mesmo muitos que concordaram com as suas decisões criticavam a falta de esclarecimentos. Este governo quando começa a falar do que quer fazer é criticado por falar demais. Não esperava coerência por parte de ninguém, mas esperava de ver um pouco mais de seriedade na abordagem de um tema tão fundamental como o orçamento de estado. O ministro pareceu-me sério e convicto do que dizia. Com isto não quero dizer que assino por baixo e que me agradou o tom. Mas a mensagem só passa se existir seriedade nos dois lados.
O ministro utilizou a família para explicar o orçamento. Considero isto ingenuidade de sua parte, talvez por o meio mais conservador pelo qual está rodeado dar importância a tal “instituição”. Mas que importância dão os portugueses à família, em especial no que respeita à boa gestão dos dinheiros? A ver pelo endividamento que os portugueses se meteram nos últimos anos, talvez hipotecando o futuro dos filhos, presumo que muito pouca. Mas se fossemos um país responsável também não haveria toda esta conversa, que qualquer criança saída da primária deveria dominar.

MC
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terça-feira, setembro 14, 2004

SPAM de Esquerda

SINTTAV é o Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Telecomunicações e Audiovisual, afecto à CGTP. Com regularidade, faz SPAM dos seus mails de propaganda ideológica, que também acaba por me chegar ao meu endereço de trabalho. Faço aqui uma breve resenha de um mail, que faz apelo a uma manifestação contra o governo.

Mail de 09-03-2004 “Jornada de Luta - 11 de Março de 2004”

Título do Anexo: “Este governo é um desastre”

Sinopse: O panfleto começa por enunciar diversos indicadores que se agravaram no últimos dois anos. E em paralelo também enuncia medidas qualitativas tomadas que considera extremamente gravosas. Face à culpa exclusiva do governo, apela à luta, por uma nova política e por um novo governo. Enunciação de algumas bandeiras de luta. Finalização com apelo à jornada de luta (manifestação no Rossio em 11 de Março).

Cores utilizadas: Branco, vermelho e azul. Grafismo agressivo.

Frases sonantes:

“Vivemos um momento particularmente grave. Uma ofensiva sem precedentes contra os trabalhadores e contra o próprio regime democrático saído do 25 de Abril está em curso. O Governo PSD/PP Principal responsável”

“Dois anos deste governo só trouxeram mais do mesmo ou seja:

Recessão económica;

(...)

Assalto do capital financeiro ao núcleo estrutural do Estado Social – educação, segurança social e saúde;

Desmantelamento da Administração Pública e entrega à gula lucrativa de serviços essenciais, como a água e o ambiente.”

“A razão chama-nos à luta”

“Em todos os sectores e em todas as regiões, vamos repudiar a política do Governo PSD/PP, que só serve os interesses do grande capital financeiro.”

“Por nova política, por novo governo”

“O País Precisa de tomar novo rumo”

“Lutamos por uma política onde o económico e o social andem ligados”

“Contra a carestia e o desemprego”

Número de vezes que “luta” ou o verbo lutar aparece: 11 (em 2 páginas)


O conteúdo deste mail, num mundo de mudança, já devia estar desactualizado passado alguns meses. No entanto, sabemos que iremos continuar a ouvir este tipo de frases ainda por muitos anos. É certo que há coisas universais, que serão sempre válidas, mas não me parece que seja o caso. A propaganda, seja a favor ou contra algo, é uma das formas mais baixas de utilizar as palavras.
MC
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domingo, setembro 05, 2004

Horror

Esta semana terminou com um desenlace trágico da crise dos reféns na Ossétia do Norte, com a morte de centenas de pessoas, grande parte das quais crianças. Escrever o que quer que seja depois de barbáries como esta, sentado no meu confortável sofá, envolve sempre um certo sentimento de falta de pudor, numa altura que devia ser de luto. Acabo talvez por escrever porque a revolta perante o que vejo é grande e preciso de a exteriorizar. Ou quem sabe me motivem razões mais egoístas, por sentir que o que aconteceu agora na Rússia, como antes o que aconteceu nos Estados Unidos ou em Espanha, pode acontecer em qualquer lado, pode acontecer aqui, pode-me acontecer a mim, aos meus pais, aos meus irmãos, aos meus amigos, ou um dia, se os tiver, aos meus filhos.

Há muitos anos que tenha a convicção que não se pode negociar com qualquer tipo de terrorismo. Muito antes do 11 de Setembro ou do 11 de Março. Esses ataques e agora este na Rússia apenas vieram reforçar e ampliar essa convicção. Quaisquer que sejam as causas ou por muito justas que sejam as motivações é inaceitável aceitar, menorizar, pactuar, transigir ou negociar com qualquer espécie de terroristas.

Não posso deixar de fazer uma referência à cobertura mediática da crise. Não posso deixar de mostrar algum incómodo pela forma como vi o trágico desenlace deste crime contra a humanidade, coberto nos segmentos televisivos e radiofónicos que acompanhei. Na TSF, RTP1, SIC e SIC Notícias (as que acompanhei) os comentários e análises jornalistas colocavam sempre o foco na forma como as forças de segurança russas falharam no evitar da tragédia e de como este massacre vem lembrar Putin de que não conseguiu resolver o problema da Chechénia. Não ponho em causa a razão de tais análises e não sou certamente apologista da forma como Putin lidou com a situação na Chechénia. Mas que estes comentários apareçam logo a seguir à descrição dos factos ou muitas vezes com as imagens do horror em fundo, quase que sugerindo que eram Putin ou as impreparadas forças os principais responsáveis pelo massacre. E os terroristas? Um grupo de algumas dezenas de “pessoas” (?), que armadilhou uma escola? Que a sequestrou com milhares no seu interior, matando logo a sangue frio vários reféns? Que durante dias não permitiu qualquer tipo de abastecimento, levando, segundo alguns relatos, a que crianças tivessem que se alimentar dos seus próprios dejectos para matar a sede? Que, depois do descontrolo se instalar, não tiveram dúvidas em atirar a matar sobre tudo o que se mexesse? Sobre estes, e sobre como devemos lidar com criaturas dispostas a isto, não ouvi uma palavra. Talvez seja a hora de ir ter com eles, compreendê-los, entender as suas razões, trazê-los para a mesa da razão e negociar...
JPE
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quarta-feira, setembro 01, 2004

A propósito do “Barco do Aborto”

Não serve este post para efectuar um pronunciamento sobre a situação de tal embarcação, nem para marcar posição sobre o Aborto (ou interrupção voluntária da gravidez ou massacre de criancinhas inocentes, como alguns exaltados ousam chamar). Não será difícil encontrar opiniões e posições cerradas sobre estes assuntos.

O único propósito deste post é mostrar a minha total falta de interesse pela forma como esta questão é debatida em Portugal. Saliento que acho a questão do Aborto bastante delicada, existindo fortes argumentos de ambas as partes. Penso também que não existe solução ideal e qualquer discussão séria tem de passar por admitir isso. Mas não queria entrar por aí, porque existem pessoas muito melhor habilitadas que eu para dar alguma luz ao assunto.

Gostaria de explicar porque me repugna a forma como a questão é debatida. Aparentemente, a discussão é feita com alguma elevação, porque não se tem caído em radicalismos e as trocas de argumentos são feitas com alguma ponderação e inteligência. Mas não esqueço o que aconteceu há alguns anos atrás a propósito do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Na altura, as posições estavam bastante mais acirradas e a argumentação chegou a vários extremos, com intensa dramatização de ambas as partes.

Ingenuamente, também me deixei envolver pela discussão. Lembro-me que, apesar de tudo, se conseguiam alguns consensos: deviam ser criadas condições para que o número de mulheres que chegasse à situação de ter de abortar fosse reduzido ao mínimo, incidindo na educação sexual e outras variantes. E todas as partes iam envidar esforços nesse sentido. Eu acreditei...

Os maus sinais começaram logo quando se conheceram os resultados do referendo. Numa estação de TV, que não recordo qual, estavam dois extensos painéis de comentadores “de elite”. Ao serem anunciados os resultados, a bancada do NÃO, vitoriosa, manifestou-se efusivamente, como se tivesse sido golo da selecção. Apenas uma pessoa se manteve serena nesse lado, o que chamou a atenção de um jornalista, que foi perguntar se não tinha ficado satisfeita com os resultados, porque não ter acompanhado os outros broncos. A pessoa disse que sim, mas a delicadeza da questão e o respeito pela outra bancada não permitiam fazer tais festejos (falo de memória, pelo que os factos podem ter sido um pouco diferentes, mas penso que transmiti a essência).

Mas a reacção da bancada do SIM também não me agradou. Na altura não consegui perceber bem a razão, mas já se delineava um afastamento da questão de fundo. Mas aquela gente, de ambas as partes, andaram a discutir o quê? Comecei a pensar que a verdadeira motivação da discussão tinha sido o prazer do confronto, sendo a questão do aborto um mero pretexto. Com o passar do tempo, tal ideia intensificou-se, quando as tais medidas consensuais, que todos tinham aprovado e referido a urgência em implementar, iam ficando esquecidas.

Já sobre o referendo acerca da Regionalização algo semelhante se passou. Todos estavam de acordo que era essencial descentralizar, se não fosse através da regionalização seria com outras medias. O tempo passou e nada foi feito. Lembro-me apenas de um comentador chamar a atenção para estas situações publicamente. Questões que causam uma intensa polarização na sociedade, em que se prometem medidas, mas depois passa o interesse da causa e todos parecem ter esquecido o que disseram.

Um povo (elites incluídas) que apenas tem energia para o confronto mas que mostra repulsa em deitar mãos à obra e pensar seriamente nas situações, para além de impulsos passageiros, não está condenado a nada de bom.

MC


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