quarta-feira, setembro 01, 2004

A propósito do “Barco do Aborto”

Não serve este post para efectuar um pronunciamento sobre a situação de tal embarcação, nem para marcar posição sobre o Aborto (ou interrupção voluntária da gravidez ou massacre de criancinhas inocentes, como alguns exaltados ousam chamar). Não será difícil encontrar opiniões e posições cerradas sobre estes assuntos.

O único propósito deste post é mostrar a minha total falta de interesse pela forma como esta questão é debatida em Portugal. Saliento que acho a questão do Aborto bastante delicada, existindo fortes argumentos de ambas as partes. Penso também que não existe solução ideal e qualquer discussão séria tem de passar por admitir isso. Mas não queria entrar por aí, porque existem pessoas muito melhor habilitadas que eu para dar alguma luz ao assunto.

Gostaria de explicar porque me repugna a forma como a questão é debatida. Aparentemente, a discussão é feita com alguma elevação, porque não se tem caído em radicalismos e as trocas de argumentos são feitas com alguma ponderação e inteligência. Mas não esqueço o que aconteceu há alguns anos atrás a propósito do referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Na altura, as posições estavam bastante mais acirradas e a argumentação chegou a vários extremos, com intensa dramatização de ambas as partes.

Ingenuamente, também me deixei envolver pela discussão. Lembro-me que, apesar de tudo, se conseguiam alguns consensos: deviam ser criadas condições para que o número de mulheres que chegasse à situação de ter de abortar fosse reduzido ao mínimo, incidindo na educação sexual e outras variantes. E todas as partes iam envidar esforços nesse sentido. Eu acreditei...

Os maus sinais começaram logo quando se conheceram os resultados do referendo. Numa estação de TV, que não recordo qual, estavam dois extensos painéis de comentadores “de elite”. Ao serem anunciados os resultados, a bancada do NÃO, vitoriosa, manifestou-se efusivamente, como se tivesse sido golo da selecção. Apenas uma pessoa se manteve serena nesse lado, o que chamou a atenção de um jornalista, que foi perguntar se não tinha ficado satisfeita com os resultados, porque não ter acompanhado os outros broncos. A pessoa disse que sim, mas a delicadeza da questão e o respeito pela outra bancada não permitiam fazer tais festejos (falo de memória, pelo que os factos podem ter sido um pouco diferentes, mas penso que transmiti a essência).

Mas a reacção da bancada do SIM também não me agradou. Na altura não consegui perceber bem a razão, mas já se delineava um afastamento da questão de fundo. Mas aquela gente, de ambas as partes, andaram a discutir o quê? Comecei a pensar que a verdadeira motivação da discussão tinha sido o prazer do confronto, sendo a questão do aborto um mero pretexto. Com o passar do tempo, tal ideia intensificou-se, quando as tais medidas consensuais, que todos tinham aprovado e referido a urgência em implementar, iam ficando esquecidas.

Já sobre o referendo acerca da Regionalização algo semelhante se passou. Todos estavam de acordo que era essencial descentralizar, se não fosse através da regionalização seria com outras medias. O tempo passou e nada foi feito. Lembro-me apenas de um comentador chamar a atenção para estas situações publicamente. Questões que causam uma intensa polarização na sociedade, em que se prometem medidas, mas depois passa o interesse da causa e todos parecem ter esquecido o que disseram.

Um povo (elites incluídas) que apenas tem energia para o confronto mas que mostra repulsa em deitar mãos à obra e pensar seriamente nas situações, para além de impulsos passageiros, não está condenado a nada de bom.

MC


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