terça-feira, novembro 28, 2006

Imagens sem mácula

A morte do ex-espião russo Alexander Litvinenko levanta uma série de suspeitas, mas nada do que se poderia vir a saber constituiria grande surpresa. O envolvimento ao mais alto nível, até ao presidente Putin, é perfeitamente plausível. Putin tanto pode ter dado uma ordem directa, como deixar simplesmente a terceiros estas tarefas menores ou, na melhor das hipóteses, é culpado por não ter desmantelado efectivamente o antigo KGB. Claro que se assume que o homem foi assassinado por alguém dos serviços secretos russos. Mais que uma suspeita, o assassinato parece ter sido preparado para não deixar dúvidas, além de ser também um aviso bem sugestivo.

Ainda antes da morte de Alexander Litvinenko já o mundo era informado sobre as prováveis causas de envenenamento, tálium simples ou radioactivo foram as primeiras hipóteses mas os exames após a morte mostraram a presença de polónio-210 no organismo. Trata-se de uma substância raríssima apenas encontrada em alguns laboratórios nucleares e não pode ser manipulada de qualquer forma. Há várias formas de assassinar um homem mas poucas que deixem uma mensagem tão clara e inequívoca, quem quiser ser uma pedra no sapato e fazer investigações sobre as cúpulas do Kremlin já sabe o que o espera, esteja onde estiver. Obviamente que as autoridades russas negam qualquer envolvimento, mera formalidade que tem a sua utilidade. Os “líderes do mundo” podem assim fazer de conta que acreditam nisso, ao mesmo tempo que pedem que toda a verdade seja averiguada, na certeza que ela não o será.

A questão que me parece interessante analisar é outra. Porque razão as autoridades russas mostram tanto desplante nesta situação quando há tantos indícios apontando para eles? Mesmo supondo que estejam inocentes, não têm feito quase nada para parecer sérios como a mulher de César. Mais que isso, quando o assunto é falado no mundo inteiro, mostram a esse mesmo mundo que se estão nas tintas para o que pensam deles. E assim, a reacção geral é simplesmente uma não-reacção, não há ali nabos a tirar da púcara. Não se vêm manifestações à porta das embaixadas russas, não há bandeiras queimadas daquele país, não há comentadores irados a pedir justiça.

Por muito menos o mundo mobiliza-se para se opor ao “imperialismo americano”. Há várias razões para o anti-americanismo mas uma delas, que é muitas vezes esquecida, tem a ver com a preocupação que os americanos têm com a sua imagem. Por mais unilateral que digam que é esta administração Bush, já se perdeu a conta aos actos que essa mesma administração efectuou para se justificar, para aprovar resoluções da ONU, para procurar aliados. As democracias estão reféns não só das eleições mas das sondagens permanentes. Por isso não são respeitadas. Putin, Castro ou Chávez não são apenas mais respeitados que Bush, ganhando também ascendente sobre a maior parte dos políticos das sociedades livres.

Esta situação, em que as ditaduras acabam por ser menos incomodadas que as democracias, tem paralelo com o fenómeno do mentiroso compulsivo. Quem conhece os casos dos mentirosos compulsivos sabe que, a partir de determinada altura, eles já não conseguem perder mais credibilidade. Aqueles que desmascarados continuam, ainda assim, com a mesma conduta, a prazo ganham credibilidade. Passa a ser um fenómeno de grupo, alguns cansam-se de estar sempre a rebater as mentiras, outros têm a estranha atitude de valorizar as poucas verdades e há ainda aqueles que passam a acreditar nessas mesmas mentiras com toda a intensidade, porque imagino que viver num universo alternativo seja deveras excitante.

MC
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