domingo, outubro 01, 2006

Jean-François Revel (6)

O PAPEL DOS JORNALISTAS

Pormenor de Guernica, Pablo Picasso.

A democracia é o sistema em que os cidadãos se governam a si mesmos. Parte dos poderes são delegados aos representantes eleitos. Neste processo é essencial um mínimo de informação verdadeira para que o sistema funcione. Se o fluxo de informação for em grande parte falseado, os eleitores vão sentir-se enganados e a credibilidade do sistema desaparece. Se numa ditadura os dirigentes não baseiam as suas decisões na informação deturpada que eles mesmo colocam em circulação, em democracia os governantes não podem agir impunemente contra a corrente de opinião dominante, por mais errada que seja. O papel dos jornalistas é essencial na qualidade da democracia, resta saber como têm contribuído para isso.

É comum a imprensa fazer uma colagem abusiva entre liberdade de expressão e “direito de informar”. A liberdade de expressão garante apenas o direito a que todos têm a exprimir a sua opinião, mas não assegura a infalibilidade da informação, nem o seu rigor e honestidade. Mas quando se aponta uma falha a um jornalista a classe reage ferozmente como se fosse a própria liberdade de expressão que estivesse em causa. São vários os lugares comuns que a imprensa utiliza para justificar a sua actuação. Um deles é que a informação deve ser pluralista. Mas a informação ou é verdadeira ou falsa, não pluralista como a opinião. A maior parte da informação não é verificável ao ponto de eliminar qualquer contestação mas isto não deve ser desculpa para a preguiça ou para a fraude. Quem acredita mesmo na justeza das suas ideias deverá querer uma informação tão imparcial quanto possível, os factos bastam-lhe. O pluralismo tem lugar depois da apresentação dos factos e não antes, como é costume.

E aqui revela-se algo bastante pernicioso, a opinião disfarçada de informação. Os jornalistas europeus são particularmente grosseiros neste aspecto e as suas motivações percebem-se facilmente. Os jornalistas americanos, que troçam dos seus colegas europeus pela mistura que fazem entre factos e opinião, são regidos por uma disciplina muito mais rigorosa mas ainda assim recorrem frequentemente ao estratagema de «apresentadas num tom de neutralidade impassível informações falseadas ou truncadas ou alteradas.» A independência é constantemente referida como uma garantida de imparcialidade. «O homem não precisa que o forcem a ser intelectualmente desonesto para o vir a ser. Consegue isso muito bem sozinho. Também não precisa que um poder exterior o obrigue a ser incompetente, de tal modo é grande a sua capacidade de o conseguir sozinho e com toda a espontaneidade.» Jean-François Revel parece não ter tido conhecimento do caso português, onde todos os meios de comunicação social dizem-se imparciais quando claramente não o são.

Outro lugar comum em relação ao jornalismo é a sua função de contrapoder. Aqui a imprensa assume-se como mais um poder, mais uma magistratura, mas ao contrário das restantes não está rodeada de garantias de competência e imparcialidade. A avaliação jornalística é feita pelos próprios pares e pelo público. Mas existe um pacto de não-agressão implícito entre os vários jornais, rompido apenas por folhas extremistas com pouco relevo mediático. Em relação ao público, a avaliação é muito limitada uma vez que os elementos que em geral possui são fornecidos pela própria imprensa. É notório que quanto mais informação sobre um assunto os indivíduos têm, mais duramente julgam a imprensa. Actualmente os blogs encontram-se na linha da frente da avaliação da imprensa tradicional, ao ponto de muitas vezes a substituírem. É curioso que a missão de contrapoder metamorfoseia-se como por magia na de pró-poder quando esse poder muda de mãos. Percebe-se aqui a hipocrisia destas missões.

Mas a própria missão de contrapoder devia ser avaliada em termos mais abstractos. Começa logo por ser um desacreditar da própria democracia, porque pressupõe que o poder está sempre errado e quem o elege também. Tendo ainda em conta que são reduzidas as possibilidades de fazer reportagens sérias em países socialistas e noutro tipo de ditaduras, para não falar da falta de vontade, daqui resulta que a esmagadora maioria da informação é contra a própria democracia. E toda a bravata da imprensa se assumir como contrapoder desaparece quando o regime se torna totalitário. Não só a imprensa desiste de levar a cabo esta missão, quando ela mais se justificava, como facilmente se coloca na posição de veicular a opinião que a liberdade de expressão é dispensável. Um dos grandes paradoxos da imprensa está em ser um produto único de uma civilização onde existe liberdade de crítica, contudo ela nega que essa mesma crítica, de que ela vive, seja aplicada a si própria. «Ora, há tão poucos jornais em cada democracia que a respeitam, como há países no mundo que respeitem a democracia. Nos outros casos, os mais numerosos, a imprensa não é o contrapeso ou o antídoto da desonestidade política; faz parte dela, constitui um dos seus principais instrumentos.»

Por último, recordando alguns casos em que a imprensa tentou influenciar o curso da História e nunca se arrependeu por isso. O “Times” de Londres era favorável a um entendimento com a Alemanha nazi. Não se limitou a publicar uma opinião como escondeu informação que provava as intenções bélicas do regime nacional-socialista. Depois do final da segunda guerra mundial vários jornalistas americanos passaram a ideia que Estaline iria levar a União Soviética rumo ao capitalismo, quando nada do que viram no terreno indicava isso. Isso influenciou várias tomadas de decisão do presidente Roosevelt que viriam a definir a configuração mundial nas décadas seguintes. Também a guerra do Vietname terminou por pressões da opinião pública, largamente influenciada por peças preparadas à medida por jornalistas pró-comunistas ocidentais que chegariam a confessar estes actos mais tarde, e não devido a uma derrota militar. A atenção jornalística sobre o Vietname desapareceu por completo quando a guerra terminou, o que era bastante conveniente para não ver os massacres que ocorriam em massa perpetrados pelas forças comunistas. Estes mesmos jornalistas queriam fazer passar a ideia de que os Contra da Nicarágua era uma força sem qualquer apoio popular, existente apenas devido ao apoio da CIA, quando o que deviam ter dito que quem não tinha apoio popular era o regime Sandinista no poder apenas devido ao apoio soviético. Novamente os jornalistas ocidentais abraçaram a causa de denegrir os mandatos de Reagan e Tatcher, mesmo que isso implicasse esconder os indicadores económicos positivos na sua esmagadora maioria ou mostrar uma complacência infinda pelo terrorismo. Mas os jornalistas não fizeram tudo sozinhos, tiveram o caminho preparado pelo sistema de ensino moderno e pelos intelectuais, temas dos próximos posts.

Seria curioso fazer um exercício de imaginação para tentar perceber como seria o mundo actual se as causas abraçadas pela maior parte do jornalismo tivessem vingado. A imprensa podia muito bem ter criticado as múltiplas ingerências que os EUA e outros países ocidentais cometeram um pouco por todo o mundo. Seria ridículo ter-lhes pedido que, em nome de um qualquer patriotismo, tivessem calado os factos, escondido os erros, os exageros, os horrores. Mas isso teria sido ético se o tivessem feito com isenção e mostrado que do outro lado estava o imperialismo comunista, o financiamento, a propaganda e os exércitos de Cuba, China e União Soviética. Criticar apenas uma das partes revela, no mínimo, apoio implícito ao outro lado. Se as causas defendidas implicitamente, para ser benévolo, pelo jornalismo tivessem vingado, todo a Europa teria caído no jugo Soviético, toda a Ásia seria comunista e o mesmo se poderia dizer das Américas abaixo do Texas. Seria mais fácil dizer o que não teria caído dentro do bloco vermelho. Estados Unidos, Canadá e, talvez por serem ilhas mas sem que isso lhes desse garantias, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia e Japão. E dentro deste reduzido “mundo livre” o que deveria vigorar, segundo o jornalismo, seria um regime de intenso estatismo, no fundo não muito diferente do verificado nos países socialistas.


Nota: Este último parágrafo foi incluindo posteriormente e não pode ser considerado como uma exposição das ideias de Jean-François Revel. Trata-se de uma adição da minha exclusiva responsabilidade.

MC

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