sexta-feira, setembro 15, 2006

Jean-François Revel (2)

CIVILIZAÇÃO E INFORMAÇÃO




Parece abusivo dizer que a humanidade, na sua situação actual, comporta uma única civilização. De certo que essa única civilização não se caracterizaria pela homogeneidade, já que é composta por uma enorme diversidade de sistemas políticos, económicos e legislativos, assim como por diversas mentalidades e religiões. O elemento comum é um fundo de informação mundial a que ninguém se consegue subtrair totalmente, que resulta das interacções económicas, geopolíticas e geoestratégicas que se tornaram inevitáveis.

Naturalmente que a informação não é a mesma em todas as culturas, sendo controlada quase em exclusivo por uma elite nos regimes totalitários, e difundida quase sem barreiras legais nas democracias liberais, passando por um grande conjunto de regimes intermédios onde a informação é semi-livre. Mesmos os regimes totalitários, que tentam privar os seus cidadão de qualquer informação não oficial, não podem evitar que os seus dirigentes se subtraiam ao fluir informativo mundial. Por outro lado, mesmo o ditador mais inimigo da liberdade de expressão não deixa de tentar ele mesmo de contribuir para o grande caldo informativo global e é notável a preponderância que conseguem por vezes assumir.

Este insólito protagonismo de regimes e figuras aberrantes é grandemente favorecido pela relativização cultural proclamada pelo Ocidente, que nos dá a entender que todas as culturas são moralmente equivalentes. Esta atitude diverge daquela que o resto do mundo vem tomando, que é um exacerbar do etnocentrismo e um aumentar da intolerância face a outras culturas, especialmente a ocidental.

Se o controlo da informação num regime totalitário é quase uma ciência exacta, uma vez que a sua manutenção depende mais disso do que de um exército poderoso, aquilo que se passa nos regimes livres é bastante mais complexo. Em teoria não seria assim tão difícil de avaliar a situação, isto se acreditássemos que o Ocidente passou a ser dominado pelo pensamento científico, pelo que o conhecimento e a informação ir-se iam acumulando paulatinamente, naturalmente com alguns erros, que no entanto seriam detectados e corrigidos num curto espaço de tempo. Mas não é nada disso que acontece. Apesar de estarmos rodeados de ferramentas que derivam da ciência, o pensamento científico é tão raro hoje como há vários séculos atrás. E isto verifica-se mesmo entre os cientistas quando não estão a exercer a sua especialidade.

Pode-se argumentar que não há nada de extraordinário em esta atitude científica ser tão rara já que a maior parte das questões que a humanidade enfrenta não fazem parte do seu domínio, ou seja, não se prestam a uma demonstração irrefutável mas apenas a uma reunião de feixes de verosimilhança. Mas Platão já nos tinha dito que mesmo neste sector conjectural devíamos manter a mesma atitude de seriedade e rigor para tentar chegar à “opinião verdadeira”. A quantidade de informação disponível actualmente deveria aumentar bastante a probabilidade de ter êxito nesta tentativa. O que o livro tenta mostrar é que esta probabilidade não tem sido aproveitada. O homem tem tendência a afastar-se da razão sempre que espera fazê-lo impunemente.

A própria razão veio servir de pretexto para separar, quando não opor, ciência a religião. Para Descartes ou Leibnitz não eram domínios em conflito porque “Deus é Razão”. Contudo, a partir de determinada altura os partidários do racionalismo eram ao mesmo tempo os maiores inimigos da religião. Por incrível que pareça, isto não contribui para substituir as crenças infundadas pelo conhecimento. O objectivo último era ligar qualquer actividade do espírito à sua componente lógica, o que veio desvalorizar a intuição, a poesia, a mitologia. A invasão do racionalismo em domínios que não eram os seus teve como consequência ser mais difícil efectuar uma distinção entre o racional e o irracional. Isto abriu caminho para o relativismo sob o qual temos vivido desde então, em que todo o tipo de conhecimento e de comportamento passaram a ser considerados de igual valor, sendo validados pelas escolhas passionais e ideológicas. Não é por acaso que o sector ideológico é aquele que mais espaço concede à irracionalidade.

MC
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