Jean-François Revel (4)
O declínio ideológico da esquerda europeia ocorre quando esta atinge o poder. A realidade obriga ao abandono de muitas promessas progressistas e à aplicação de políticas liberais. Para compensar esta ausência de prática ideológica criou-se um programa alternativo baseado no racismo. Os problemas com a emigração são vistos como se estivesse em marcha uma ampla conspiração fascista, que mais não seria que um endurecimento natural do liberalismo. A obsessão pelo igualitarismo leva a que qualquer processo que possa fazer distinção entre pessoas, nem que seja um exame de admissão à universidade, seja comparado ao apartheid ou à perseguição nazi de judeus. Diz-nos Albert Memmi que o anti-racismo é uma aquisição cultural, que como todas, resulta de uma conquista longa, difícil e sempre ameaçada. A utilização do racismo como uma arma de arremesso tem servido, de forma consciente ou não, para agravar muitos problemas relacionados com a emigração.
Este anátema lançado acaba por ser uma demissão em relação à análise séria dos problemas da emigração. Cria-se espaço político para fenómenos como a ascensão de forças como a Frente Nacional de Le Pen. O fenómeno é curioso e, contrariando o mito esquerdista, vota maioritariamente em Le Pen quem antes votava à esquerda. Inquéritos mostram que a votação na Frente Nacional não se faz por motivos racistas. Acontece que os partidos de esquerda negam que possam existir problemas de emprego e delinquência relacionados com a emigração e nunca admitem que as culpas não estão só nas populações de acolhimento. Amplas populações não se revêem, portanto, nestes partidos, mas não é à direita democrática que encontram alternativas. Aqui reina o pavor de apresentar quaisquer propostas que os levem a ser comparados a Le Pen. Este último não se faz rogado e apresenta-se como o salvador.
O movimento anti-racista preocupa-se unicamente com o racismo da raça branca em relação a outras. Jornalistas, políticos e académicos querem nos fazer crer que não há racismo em sentido inverso nem entre tribos africanas diferentes. Escondem-nos também que existiu escravidão no mundo islâmico até bem tarde (oficialmente na Arábia Saudita até 1962 e na Mauritânia até 1981). Os activistas anti-racistas que vociferam violentamente contra os seus governos quando um grupo de emigrantes ilegais é deportado, ficam mudos, completamente inertes, face a actos racistas cometidos por negros. O apartheid da África do Sul foi amplamente censurado, e bem, mas no Burundi vigou um apartheid negro bem mais violento que não suscitou quaisquer protestos, chegando mesmo a existir colaborações com este regime sanguinário com vários governos de direita e de esquerda.
Criticar um regime socialista africano provoca dois receios, o de ser chamado racista e também de reaccionário. Por isso, quaisquer problemas que ocorram são atribuídos às condições climatéricas ou a intervenções exteriores ou ainda a guerrilhas anti-marxistas. Este lavar de mãos com explicações simplistas acaba por ser o acto mais racista de todos porque conduz ao desinteresse que permite que déspotas cruéis e incompetentes governem milhões de africanos. Dos muitos exemplos que se poderiam dar, talvez o mais gritante tenha-se passado nos anos 80 na Etiópia de Mengistu. Seguindo a receita de Lenine na Grande Fome de 1921, o regime provocou ou deixou alastrar uma crise de fome, quando ela teria sido perfeitamente controlável. Em pouco tempo as imagens chocantes percorrem o mundo, distribuídas pelas grandes cadeias televisivas. O ditador que provocou a situação lançou acusações ao ocidente por não ter respondido a tempo e a esquerda em peso apoiou-o incondicionalmente. Começam a chover as ajudas públicas e privadas. Não chegará quase nada aos carenciados, sendo tudo repartido pelo exército, pela Nomenclatura e destinado ao acelerar da revolução. Bob Geldof foi dos que mais se esforçou para contrariar isto mas foi facilmente ludibriado. Longe de ter aprendido alguma coisa, recentemente voltou a insistir na mesma receita. Cerca de 1,2 milhões de etíopes morreram em consequência desta encenação, que levou Mengistu a ser considerado um herói pelo Movimento dos Não-Alinhados (que agora se quer fazer renascer), Internacional Socialista, Teólogos da Libertação e Conselho Ecuménico das Igrejas.
Não está em causa deixar de ajudar os países carenciados mas sim responsabilizá-los pelos seus actos. Para quê aplaudir uma reforma agrária que não transferiu terras para os agricultores mas criou cooperativas geridas por citadinos ignorantes e corruptos, conduzindo à descrença generalizada, a ponto de se ter de importar produtos alimentares? A luta contra o apartheid teria sido justíssima se não tivesse sido apenas uma estratégia de arremesso que serviu para desculpar todo o tipo de atrocidades cometidas noutras paragens. Este movimento anti-racista, tornado nas últimas décadas ideológico e logo ineficaz e contraproducente, conseguiu também agravar o ódio que o ocidente tem a si mesmo.
O relativismo cultural que o ocidente criou foi deturpado. Originalmente Platão e Aristóteles, depois retomados neste aspecto pelos filósofos iluministas que incluíram os founding fathers americanos, definiam o princípio relativista na imparcialidade do julgamento de todos os costumes e não na sua equivalência à partida, porque quem assim pensa já não acredita em valor algum. O ocidente sofre um fenómeno estranhíssimo, porque pretende abandonar esta imparcialidade de julgamento não de forma chauvinista, como seria de supor, mas quase considerando que todos estão certos menos nós. Não há aqui qualquer desenvolvimento do sentido crítico mas apenas o seu completo abandono.
Pode-se comprovar isto de diversas formas. Há o lado da “salvação”, uma ânsia enorme em procurar coisas do exterior, quanto mais longe melhor. Parece que só práticas exóticas podem dar benefícios, só a comida de locais distantes fosse saudável ou só as viagens a locais remotos tivessem interesse. Tudo isto pode ser interessantíssimo e enriquecedor se não fosse feito quase por agonia a tudo aquilo que está próximo dos ocidentais. Se em causa estiverem conflitos entre o ocidente ou uma parte dele e qualquer outra parte do mundo, atropelam-se as vozes a tentar encontrar culpas sempre e apenas no ocidente. O processo é também facilitado por alguns bodes expiatórios rotineiros que, mesmo quando não estão minimamente envolvidos, alguém lhes consegue assacar sempre as responsabilidades. O tema será desenvolvido alguns posts mais à frente, mas não é muito difícil perceber onde se vai chegar.
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