quarta-feira, setembro 27, 2006

Jean-François Revel (5)

A IDEOLOGIA

Montagem de John Heartfield

Fala-se com frequência da reduzida importância na actualidade em falar de direita ou esquerda. Contudo ainda faz todo o sentido avaliar aqueles que se consideram de direita e, sobretudo, os de esquerda. Se inicialmente a esquerda significava a defesa da liberdade, do direito e da paz, actualmente qualquer regime despótico e repressivo pode chamar-se a si mesmo de esquerda que poucos se prestam a assinalar qualquer contradição. Mesmo os regimes ditatoriais com pouca vocação ideológica descobriram que se chamarem assim o rótulo esquerdista irão imediatamente ganhar um beneplácito geral.

O declínio eleitoral dos partidos comunistas poderia fazer supor que era apenas uma questão de tempo até estes enviusamentos ideológicos estarem corrigidos. Poucos parecem ter reparado que a chamada esquerda moderna, apesar de ter um discurso completamente diferente dos grupos marxistas tradicionais e muito mais adaptado aos tempos actuais, na sua essência defende as mesmas receitas socialistas de sempre. É esta esquerda que agora mais se empenha em defender os regimes totalitários. É também ela que mostra maior talento para o extermínio moral dos adversários e é também a campeã das causas justas (e haverá alguma causa que não o seja para quem a defende?) que lhe justificam quaisquer procedimentos injustos, o que contraria os fundamentos da democracia que apenas autoriza os métodos justos.

Não são as ideias a fonte de tudo isto mas o mecanismo bastante mais refinado e eficaz da ideologia. Não há qualquer objectivo de conhecer a verdade na ideologia mas apenas manter um sistema de crenças que tenta abolir todos os que não partilham da mesma fé. A simples mentira, oportunista, táctica, não basta. É necessária uma mentira bem mais complexa e exigente de forma a mudar «a imagem do mundo em função da visão que se quer dele.» A ideologia vai implicar uma suspensão do sentido moral e das faculdades intelectuais

Jean-François Revel descreve a ideologia como uma tripla dispensa: dispensa intelectual, prática e moral. A dispensa intelectual tenta condicionar todo o fluxo de informação, retendo apenas os factos que forem favoráveis, inventá-los se for preciso, e omitir o que é desfavorável e se possível impedir a sua divulgação. A dispensa prática retira toda a relevância à eficácia, pelo que no limite não existem fracassos. É mesmo uma das tarefas mais honrosas do ideólogo a fabricação de explicações que absolvem a ideologia. A dispensa moral é talvez a mais terrível de todas, porque coloca os actores ideólogos fora do alcance de qualquer critério de bem e de mal. Não se nega a moral, pelo contrário, ela confunde-se com a própria ideologia, e os actos mais bárbaros feitos em seu nome passam a ser virtuosos.

Face a isto, não é de estranhar que tantos intelectuais e jornalistas tenham descrito como terras de abundância e prosperidade lugares onde populações inteiras corriam o risco de morrer à fome. Mas o fenómeno não é só do século XX. Quando o mito do bom selvagem de Rousseau era tido como paradigma, os exploradores descreviam sociedades idílicas no Tahiti, quando o que deviam ter relatado eram roubos, sistemas de castas, prostituição, infanticídio, idolatria e até sacrifícios humanos. Outro fenómeno interessante passa-se com alguns progressistas americanos (estranhamente chamados lá de liberais), que sendo a favor da emancipação da mulher e contra a pena de morte, conseguem depois elogiar regimes islâmicos onde as mulheres não têm quaisquer direitos e as execuções são aplicadas rotineiramente. Este exemplo dado por JFR é bastante curioso porque, quase 20 anos depois, vimos um fenómeno semelhante a passar-se com as esquerdas de todo o mundo que se mostram bastante condescendentes com os piores regimes islâmicos que violam todas as suas “causas justas”.

Marx e Engels foram os primeiros filósofos a compreender que o grosso das ideias erradas não advém de vícios de raciocínio, de deficiências de método ou de outras razões técnicas, mas sim do desejo de mentir a si mesmo, do apetite pelo falso e do prazer de enganar. A partir daí sentiram-se à vontade para delinear uma ideologia em que a objectividade prática substitui a objectividade teórica, a acção passa a ser tudo. Foram mesmo eles que alteraram o significado da palavra ideologia, que inicialmente dizia apenas respeito ao estudo da formação das ideias, passando a ser «o conjunto das noções e dos valores destinados a justificar a dominação de uma classe social por outra.» A ideologia daqui resultante diz-se baseada na ciência, mesmo quando contraria de forma flagrante os seus resultados. É um modelo explicativo global que não se queda apenas nas questões políticas e económicas. Para abraçar todas as suas contradições, o ideólogo não se apresenta como um sábio mas como um profeta ou reformador religioso.

O prestígio da ciência é colocado muitas vezes ao serviço da ideologia, mas nunca se admite que a ciência possa colocar em causa a ideologia. São inúmeros os casos de cientistas que defenderam as opiniões mais tendenciosas e contrárias aos factos. Não está em causa o direito dos cientistas em ter a sua opinião mas a impostura de tentarem colar o seu mérito científico a opiniões que à ciência e ao seu rigor nada devem. A generalidade das questões colocadas ao grande público sofre de uma apresentação grosseiramente simplista, sem mostrar quaisquer raciocínios de suporte, talvez para evitar contestação. Por isso o público moderno continua a viver largamente como o da Idade Média, sob o regime do argumento da autoridade.

Para actuar sobre as massas, a ideologia não tem que ser racional mas apenas compreensível. Parte da sua eficácia recai no poder de incentivar crenças colectivas que levem a uma mobilização generalizada, a partir de ideias que levem à acção. Pretende-se despoletar determinados comportamentos através de ideias simples e emoções fortes. A ideologia é intolerante porque não suporta que algo exista fora dela. É contraditória porque não sente que trai os seus princípios quando age de maneira oposta a eles, e cada fracasso é apenas um estímulo para a radicalização e não serve para colocar alguma coisa em causa.

A ideologia floresce porque a necessidade de tranquilidade e segurança mentais superam largamente o desejo de conhecer, explorar, descobrir. A uma nova informação os indivíduos reagem questionando-a se vai reforçar ou enfraquecer o sistema de crenças. Por isso as ideias mais interessantes são as rotineiras. A ciência sempre lutou, mesmo no seu seio, contra esta indiferença pelo saber. Parece que apenas uma ínfima parcela dos homens possui uma inclinação distinta. O que a ideologia faz é envenenar este «medo natural dos facto», intensificando bastante a rejeição natural ao que é novo.


MC
|