quinta-feira, setembro 28, 2006

O interesse geral

Lost in the crowd

Faço aqui uma curta interrupção sobre a série de posts dedicados a Jean-François Revel. “Justiça Social” ou “Interesse Geral” são dois chavões dourados para o burocrata de carreira e para o político. Em nome dos dois justifica-se a manutenção do status quo, a atribuição de subsídios, o erguer de barreiras económicas, a construção de obras faraónicas ou até mesmo a proibição de fumar em locais privados. Naturalmente que, se necessário for, a justiça social e o interesse geral também justificarão facilmente o oposto de tudo isto. Mas os dois chavões não se equivalem. Justiça social tem um certo travo ideológico que lhe limita o espectro de acção. O interesse geral, pelo contrário, pode ser defendido por todos.

O mais curioso no interesse geral é ser definido habitualmente apenas por um pequeno grupo de iluminados, no limite apenas por um Grande Timoneiro. Mas em muitas situações nem chega a ser necessário definir com precisão o interesse geral. Aquilo que é apenas uma ideia vaga e nebulosa torna-se particularmente difícil de rebater. Um bom comunicador apresenta determinada proposta e remata dizendo ser do interesse geral. A plateia fica bloqueada, quem se atreve a ser contra o interesse geral? Os poucos que têm essa audácia, que na verdade não é contra o interesse geral mas contra a proposta anunciada, não se vão livrar de acusações de egoísmo ou de estarem a defender interesses poderosos e obscuros. O apelo ao interesse geral acaba por ser um estratagema para evitar um debate aberto e construtivo, criando um atalho rápido para a aprovação/reprovação do que está em cima da mesa.

Pensemos um pouco sobre o interesse geral. Não haverá uma determinada obra ou uma moldura legal específica que beneficie grande parte da população? Certamente que sim, leis que protegem a vida ou a liberdade de expressão, infra-estruturas rodoviárias ou o saneamento básico. Acontece que o interesse geral é invocado quase sempre num contexto bem longe desta génese civilizacional. Quase nunca está em causa a obtenção destas condições mínimas que qualquer sociedade devia ter mas outras, bem mais dispensáveis, mas que são apresentadas como se o fossem. Por exemplo, não está em causa saber se Portugal deve ter um aeroporto, se não tivesse nenhum, mas se deve avançar para a OTA. Contudo, o empreendimento OTA é apresentado como se fosse tão fundamental para o país como ter o seu primeiro aeroporto.

Mas há ainda outro elemento invariavelmente ligado ao apelo do interesse geral, que é o Estado. Quem defende algo com o pretexto do interesse geral, ou ocupa o aparelho do Estado ou pretende servir-se dele. A questão é esta, numa democracia estabilizada, com um conjunto de infra-estruturas básicas operacionais, que legitimidade tem o Estado para definir o interesse geral? Dizer que a legitimidade advém do voto é risível porque a cruzinha no boletim não é uma declaração de transferência de poderes completa.

Penso que seria acertado dizer que o Estado tem o direito de tomar medidas de interesse geral, para além da gestão corrente, quando se verificam em simultâneo três condições: 1) A medida em questão beneficia a maior parte da população, tendo consequências secundárias negligenciáveis; 2) Não inviabiliza a prossecução de outras acções mais importantes; 3) Não pode ser implementada pela sociedade civil de forma espontânea num intervalo de tempo razoável.

A primeira condição é linear, mera questão de seriedade. Infelizmente nem sempre há um clima de serenidade suficiente para chegar a um razoável consenso que devia ser fácil. Na segunda condição a maior parte das pessoas despista-se. O impulso natural é de que se uma dada medida é positiva deve-se avançar para ela sem mais delongas. Raramente alguém se detém a pensar se não haverá uma alternativa superior. A questão da eficácia é ainda considerada um preciosismo irrelevante para a maioria, e mesmos os economistas “esquecem-se” com frequência de avaliar os custos de oportunidade, quando tal devia ser um rotina elementar.

A terceira condição é a mais complexa. A maior parte das pessoas não se apercebe que o seu trabalho, por mais irrelevante e monótono que pareça, acaba por ser a resolução de problemas para outras pessoas, por isso não conseguem conceber que a sociedade civil consiga resolver os seus problemas espontaneamente. Não é por acaso que se ouve dizer que alguém quer ser médico, mas podia ser bombeiro ou polícia, para poder ajudar os outros. Só em casos como este, em que há contacto directo, há a noção de se estar a ajudar.

Mas como poderiam “ajudar o outro” médicos, bombeiros e polícias se não tivessem quem lhes fornecesse os instrumentos que utilizam, as instalações de que dispõem, as viaturas, e toda uma infinidade de outras coisas como roupa, alimentação ou electricidade? Por sua vez, quem fornece estes bens intermédios também tem que se suportar de outros sectores de actividade para poderem produzir. E o círculo continua virtualmente até ao infinito porque se liga a si mesmo, não só num país mas espalhando-se além fronteiras numa rede invisível que permite à Sociedade resolver os seus problemas espontaneamente, mesmo que a maioria das pessoas nunca possa ter uma vaga ideia dos fins últimos que os serviços que oferece possibilitam.

Pode-se argumentar que se isto é verdade para a maior parte das questões, há um número restrito de problemas que nenhuma sociedade poderá resolver de forma espontânea. É um assunto que não está fechado e já Adam Smith defendia que apenas os Estados podiam construir caminhos-de-ferro, que eram bens de inegável utilidade estruturante. Mas tudo dever questionado porque não nos podemos esquecer de múltiplos serviços que se dizia só poderem ser fornecidos pelo Estado, mas as privatizações vieram desmentir isto de forma categórica.

Mas a questão nem devia ser sobre o que deve fazer o Estado mas sim se já foi dada oportunidade à sociedade civil para tratar do assunto. É o Estado o maior impedimento para que a sociedade civil descubra o seu “interesse geral”. Na realidade, o interesse geral é uma concepção colectivista, apenas com significado naquele conjunto mínimo de organização e de infra-estruturas já referido. Para além disso, a sociedade não tem um interesse geral mas múltiplos, que só ela consegue descobrir a forma de os alcançar e qual a melhor atribuição de recursos para o fazer. Se alguém lhe falar em interesse geral, pergunte-lhe antes se não será um seu interesse bem particular.

MC
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