sexta-feira, julho 13, 2007

Mau demais para ser verdade

Existe uma quantidade de «mal» que o ser humano pode conceber no seu espírito. Acima dessa quantidade o homem deixa de classificar o mal como mal e passa a vê-lo como outra coisa qualquer. Pode mesmo entrar em fase de negação, recusando aceitar o evidente. É-nos relatado que a entrada nos campos de concentração nazi era sentida por muitos prisioneiros como irreal, não queriam acreditar, pensavam ser um engano que a qualquer momento iria ser desfeito. Alguns até conseguiam brincar com a situação. Quem também já lidou com mentirosos compulsivos sabe que é incomparavelmente mais fácil ficar desapontado com alguém que foi apanhado apenas numa mentira isolada. Ao mentiroso compulsivo dá-se crédito esperando que ele se modifique, ao ponto de deixar de o recriminar quando ele mente e passar a recompensá-lo quando ele tropeça na verdade. Por outro lado, podemos perder a confiança em alguém para sempre devido apenas a uma mentira, mesmo que inocente.

Desconheço as razões profundas de ser tão difícil conceber o «mal» para além de um determinado limiar. Suponho que seja algo inerente ao ser humano e não apenas uma característica adquirida socialmente. Provavelmente, se o mal em grande escala fosse facilmente concebível muitos seriam os que não resistiriam à tentação de o colocar em prática e a espécie humana já estaria extinta. A globalização abre perspectivas únicas para a prática do mal em larga escala. A combinação é explosiva porque quanto maior é o tamanho da ameaça mais difícil será acreditar nela e, por isso, enfrentá-la.

Vejamos algumas situações onde isto se aplica. Talvez ainda alguém se lembre do caso entre Marcelo Rebelo de Sousa e o governo de Santana Lopes. Ao certo só sabemos das declarações de alguém próximo de Santana Lopes a pedir um espaço para contraditório. A reacção fez lembrar a que ocorreu a pretexto das caricaturas do Profeta publicadas no jornal dinamarquês. Acusações de pressões inaceitáveis, chantagem sobre um canal de televisão, tentativa de implementar a censura. Desde o cidadão anónimo ao Presidente da República, da esquerda à direita, a indignação foi generalizada. O novo governo iniciou funções e Sócrates não só pediu um espaço para fazer contraditório a Marcelo Rebelo de Sousa como tratou de providenciá-lo na RTP, naquele programa patético onde António Vitorino tem o prazer de se fazer ouvir. Os indícios de tentativa efectiva de censurar, de pressionar vozes discordantes ou desconfortáveis abundam neste governo, como se sabe. Mas as reacções estão bem longe de atingir as do tempo de Santana Lopes. Aqueles a quem só faltou arrancar os cabelos para falar diatribes em Santana se agissem proporcionalmente teriam agora de se imolar pelo fogo na praça pública.

A reacção ao terrorismo é também um bom exemplo das dificuldades em conceber o mal. Se prestarmos atenção, a maior parte das críticas que se fazem ao combate ao terrorismo não se prendem com a estratégia. É perfeitamente legítimo argumentar que determinadas acções são pouco eficazes, que outras são contraproducentes ou que têm custos demasiado elevados. Contudo, este tipo de críticas fundamentadas constitui uma minoria. A maioria parte da premissa implícita que não é necessário combater o terrorismo. A ameaça é desvalorizada e todos os atentados que ocorreram têm uma explicação lógica. Os americanos foram atacados porque andaram a pedi-las, os espanhóis e os ingleses porque se puseram ao lado dos americanos. Guarda-se um precioso silêncio sobre os atentados ocorridos em países muçulmanos e os abortados um pouco por toda a Europa, mesmo sobre alguns campeões do antiamericanismo.
Agora um caso mais difícil. No fim-de-semana passado o mundo deu as mãos para salvar o planeta. Aparentemente as pessoas que se mobilizaram para defender o planeta conseguem conceber o mal em grande escala e lutar contra ele. Falta esclarecer um ponto. O que é difícil de conceber é um mal real, não um imaginário, mistificado ou ligado a algum tipo de transcendência. O que os “defensores do planeta” fazem é apenas um julgamento pueril, identificando uma relação simplista causa / efeito que tudo explica e onde se pode fazer uma atribuição de culpas directa, que pode ser ao homem ocidental, ao capitalismo, às grandes empresas, ao Bush ou a qualquer outro demónio. Há aqui apenas um jogo de ilusões para tolinhos. A dificuldade em conceber um mal em larga escala é até mais evidente que nos outros casos. Seja qual for a realidade sobre o aquecimento global as alterações climáticas, temos em mãos um movimento que configura um dos maiores embustes da história da humanidade. A dificuldade em conceber o mal é de tal forma patente neste milhões de fiéis ecologistas que os leva a ser ardorosos veículos de transmissão da mentira. A alternativa, considerar que os milhares de notícias que são espalhadas por dia no mundo sobre o assunto são falsas ou deturpadas, é de tal forma monstruosa que não pode ser verdade.

Sociedades inteiras foram acreditando nos mais diversos disparates, que vistos à distância nos parecem inconcebíveis. Como deixaram de acreditar naquelas coisas? Por reconhecerem o erro? Não, fazendo uma travessia do deserto. O exame de consciência é algo que apenas algumas pessoas fazem. A velha crença é abandonada e a ela sucede um esquecimento. Passados alguns anos é como se ninguém tivesse acreditado naquelas coisas, como se remontassem a um passado distante onde ninguém pode ser responsabilizado. Daqui a uns anos a histeria do aquecimento global vai terminar e ninguém vai lembrar-se que foi um fervoroso apoiante da causa. O que foi feito dos milhões de maoistas que pululavam por essa Europa fora?

MC
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