Jean-François Revel (10)
Os 9 posts anteriores desta série incidiram no livro “O Conhecimento Inútil”, que analisava o paradoxo da constante acumulação de conhecimento, acompanhada da tomada de decisões que o ignoram por sistema. Não chegamos ainda à situação descrita na fábula da centopeia, que por ter tantas patas nem sabe como coordená-las, ou seja, a má utilização do conhecimento não se deve ao seu avolumar a extremos incomportáveis para se conseguir decidir em tempo útil. Aliás, esta tendência não se verifica em todas as áreas e precisamente em domínios técnicos, mais complexos e onde o conhecimento se acumula a um ritmo alucinante, a informação disponível é aplicada de forma construtiva a cada momento. A má utilização do conhecimento dá-se por excelência em algumas áreas, como a política, a economia e em geral todas as áreas onde a ideologia consegue penetrar.
“A Obsessão Antiamericana” é um livro de 2002, que se pode quase considerar uma aplicação prática de “O Conhecimento Inútil”, abordando um tema que certamente se irá manter actual durante muito tempo. Dizia JFR que «A vida é um cemitério de lucidezes retrospectivas.» Temos em cada época a oportunidade de mostrar um pouco de lucidez, que é menos uma questão de inteligência que de coragem. «O mistério do antiamericanismo não está na desinformação, pois é fácil obter informação sobre os Estados Unidos, mas sim na vontade de ser mal informado.»
Quando se censuram os EUA de uma coisa e o seu contrário não estamos em presença de uma análise mas de uma obsessão. Um dos muitos exemplos disto era a crítica que se fazia aos EUA por se intrometerem em tudo e assumirem-se como polícias do mundo. Mas quando a administração de George W. Bush iniciou funções e deu a entender que não queria assumir mais as funções de bombeiro universal, especialmente no que dizia respeito ao conflito entre Israel e a Palestina, começaram a chover as críticas de isolacionismo, egoísmo, dos EUA estarem a fugir às suas responsabilidades.
É tentadora a ideia de que o antiamericanismo é um fenómeno recente porque se torna mais fácil encontrar uma justificação e tentar evitar confusões com a xenofobia. Para alguns o antiamericanismo só começou com o actual presidente Bush (um conjunto de historiadores classificou recentemente Bush filho como o pior presidente de sempre dos EUA. Uma vez que já ninguém vê necessidade de haver um distanciamento temporal mínimo para se fazer História, não será de admirar que esta disciplina passe também a dar palpites sobre o futuro por tudo e por nada.) É mais comum, no entanto, associar o antiamericanismo aos receios da hegemonia americana depois da derrocada da União Soviética, curiosamente por muitos que nunca recearem a possível hegemonia vermelha. As raízes do antiamericanismo são profundas na Europa, especialmente na França, estando intimamente ligadas à perda de influência mundial que o continente perdeu no século XX.
Existe um antiamericanismo que se pode classificar de “racional”, que é o nutrido pelos marxistas, porque estes associam os EUA ao capitalismo e este ao mal. A novidade dos tempos modernos é a adesão em massa a este movimento, mesmo por indivíduos que se acham bastante afastados dos ideais comunistas. Talvez não se apercebam que a verdadeira função da crítica aos EUA é atingir o liberalismo. Tudo começa com uma colagem abusiva dos EUA a um modelo liberal perfeito, mesmo que isso seja feito à conta de exemplos de práticas americanas completamente anti-liberais. Segue-se uma descrição totalmente fantasiosa dos EUA, que são descritos quase como uma ditadura fascista, repressiva e racista. A conclusão que querem que tiremos daqui será que o liberalismo conduz ao fascismo e por isso os “idiotas úteis” disparam com frequência insultos relacionados.
Há uma palavra que, creio, JFR nunca utiliza mas que penso explicar bastantes coisas: Inveja. Num trabalho anterior, “Nem Marx nem Jesus”, JFR defende a tese de que se existiu uma verdadeira revolução no século XX não foi a do socialismo, nem a dos seus sucedâneos europeus como o Maio de 68, mas sim a revolução liberal americana. Foram os EUA o laboratório da globalização liberal, que com o impulso da administração Reagan propagou-se além fronteiras. Assim, os EUA seguem-se a Atenas, Roma, Itália do Renascimento, França e Inglaterra do século XVIII. Ora, digo eu, isto provoca uma grande inveja, que também explica as reacções ao 11 de Setembro. Logo depois dos atentados seguiu-se a condenação geral do terrorismo, numa evidente formalidade não sentida. Pois bastaram alguns dias para se formar a opinião geral de que qualquer acção militar que os EUA pudessem tomar contra o terrorismo seria bem pior que o próprio terrorismo.
Os posts seguintes irão resumir os restantes capítulos de “A Obsessão Antiamericana.”
MC
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