segunda-feira, junho 12, 2006

Che Guevara e o diabo

Morreu o Che Guevara jordano, Al-Zarqawi. Tal como o original, Zarqawi não morreu na sua pátria amada mas em terras estrangeiras combatendo o imperialismo americano. Al-Zarqawi não tem o mesmo carisma do Che. Para já, dificilmente pode vir a ser recordado só por Al, não tem o mesmo punch que Che. Apesar da barba, em termos de beleza física fica a dever muito ao original, e por isso não poderá arrebatar tantos corações femininos e alguns masculinos. Se imaginarmos aquela famosa fotografia de Che, fumando um puro cubano com uma aura de fumo em volta, o que poderá ser o equivalente para o nosso herói jordano? Mascar umas folhas de Qat? Mas o que é relevante é a essência que ambos partilham e talvez algum realizador honesto se lembre de fazer um filme sobre Al-Zarqawi para glorificar a sua figura inesquecível e mostrar o quanto o mundo livre tanto lhe ficou a dever.

Mas não podemos falar só falar de figuras agradáveis, há que fazer contraste e falar do diabo, Bush, lá está. Ao fazer zapping apanhei por breves momentos aquele programa de indigentes que dá pelo nome de Eixo do Mal. Falavam do diabo e parece que um grupo de algumas centenas de historiadores estava em vias de considerar Bush o pior presidente da história dos EUA, especialmente após o Katrina. Nixon e o presidente que ocupava o cargo aquando do crash da bolsa em 1929 também são visados. Isto é tudo muito interessante. Por um lado espanta-me que historiadores se prestem a fazer avaliações assim tão em cima do acontecimento, quando se sabe que a história não deve ser influenciada pelo espírito da época, frequentemente deturpado em relação à realidade. Mesmo casos e personagens já com centenas de anos, como a figura do Marquês de Pombal em Portugal ou Robespierre em França, suscitam ainda debates acesos entre académicos.

Outro factor que parece estar envolvido nesta avaliação é a sorte. Bush teve o azar do Katrina (entre outros), o outro teve o azar do crash da bolsa. Imagino que não lhe chamem questões de sorte ou azar porque me parece que estes historiadores partem de visões estatistas, e aos governantes atribuem todos os males e todas as curas. Esta visão infantil das coisas facilita enormemente a vida aos historiadores, que ficam aliviados do fardo de compreender as situações a fundo e podem escrever a história como um romance “light”, pontilhado por factos que pretensamente comprovem o enredo principal.

Mas pensemos numa destas situações, o furacão Katrina, por exemplo. Longe de mim dizer que a actuação da administração Bush foi imaculada e que o homem está a ser injustiçado mais uma vez. Parece óbvio que existiram falhas. Mas será que é assim tão trivial saber que qualquer um faria melhor que Bush? Recorde-se que o furacão foi o mais forte da história dos EUA, que este país é uma federação de estados com 3 níveis de poder administrativo e, logo, em muitas áreas o governo central não manda nada. Mas mais importante que isto, numa análise comparativa o que conta é saber se outros no mesmo lugar fariam melhor. No contexto actual parece óbvio a milhões que sim, mas isso não passa de uma posição de fé.

Outra vertente que me parece que perpassa nestas análise tem um carácter mais subtil. Nietzsche certamente viria aqui uma prova da vitória dos fracos, dos que se imobilizam e uma condenação daqueles que ousam ir mais longe. Mas é mais grave do que uma questão de preferir a estagnação à acção. Comparemos Clinton com Bush. Parece ridículo, Clinton parece ter vantagem em todos os aspectos, incluindo no campo sexual, não é? O que são as qualidades aparentes de Clinton? Um homem que veio do Arkansas e conseguiu criar uma imagem de sofisticação e inteligência, levando os EUA a um grande crescimento económico e um respeito internacional não generalizado mas ainda assim com bons níveis de aprovação. E Bush? O ignorante que dá mais erros em inglês que uma criança, que por vezes tem tiques de atrasado mental, que provocou um atentado terrorista no próprio país e utilizou isso como desculpa para invadir países ricos em petróleo, enquanto a situação económica dos EUA se degradava. Simples, claro, conciso e parece tão, tão verdade.

No meio disto tudo está uma concepção da realidade semelhante à do antigo Egipto, onde o faraó era um Deus a que tudo de bom e de mau se pode remeter. Na realidade, o presidente dos EUA, por mais poder que tenha, está amarrado por milhares de factores que limitam olimpicamente a sua margem de manobra. A realidade é mais complexa. Clinton, o iluminado, mal fazia ideia dos discursos que ia ler, enquanto Bush os revê criteriosamente. O crescimento económico dos EUA no tempo de Clinton mal se pode correlacionar com o seu presidente. Os ciclos económicos são naturais e quando Clinton deixou a presidência já se estava em contra-ciclo há vários meses. Bush herdou uma situação de inevitável declínio relativo, errou ao ser um enorme despesista (talvez fazendo jus ao boato da sua ascendência portuguesa), acertou ao baixar os impostos. Melhor ou pior que Clinton neste aspecto? Não sei.

Em relação ao terrorismo, Bush decidiu agir, perseguir os terroristas. Invadiu o Iraque, talvez um erro brutal, talvez. Conseguiu atrair para si uma onde de reprovação sem precedentes bem como para a sua nação um anti-americanismo cego. Clinton não fez nada, esteve bem? A administração Clinton teve boas oportunidades para neutralizar grupos terroristas mas para não manchar a boa imagem pública optou pelo deixar andar. Há quem ache que esta actuação foi de tal forma gravosa que permitiu o 11 de Setembro, além de que os actos que Clinton não cometeu foram de tal ordem que só podem ser classificados como alta traição e o homem devia ter saído directamente da presidência para a penitenciária. Exageros? Talvez, mas não maiores do que aqueles que se cometem em avaliar a presidência Bush.

Eu próprio já senti, por inúmeras vezes, uma tendência para falar mal de Bush e dos americanos em geral. De facto, a vontade de estar em conformidade com o tempo em que vivemos é enorme, mas é também uma suprema cobardia. Churchill ou Reagan foram imensamente criticados no seu tempo mas a história fez-lhe justiça. Bush não vai subir ao mesmo pedestal. Por muito que custe a alguns, as análises sérias vão avaliá-lo entre o medíocre e o médio, talvez dentro da média. Mas os tais historiadores iluminados limitam-se a fazer avaliações como qualquer grunho no café.

Uma boa amostra dessa avaliação viu-se agora antes do mundial. Numa reportagem mostrava-se a segurança “excessiva” em relação à equipa de futebol americana. Inclui-se na reportagem uma avaliação sábia de pessoas que estavam “por ali” e que conseguem logo encontrar teorias inovadoras. Um deles dizia que até certo ponto percebia que tinham de ter algumas preocupações com a segurança, mas aquilo era demais. Porque tanta segurança podia fazer que os terroristas ainda tivessem mais vontade de causar atentados já durante o mundial, o que seria muito pior. Fantástico! Seria melhor os americanos sacrificarem já a sua equipa para depois o mundial correr na maior para os outros países. Porque agora se acontecer alguma coisa, a culpa é dos americanos, é do Bush, é da invasão do Iraque. A estupidez desta avaliação é por demais evidente, mas alguém duvida que a ocorrer algo de grave as opiniões dominantes irão todos neste sentido?

Por último, a questão, grave, do alegado massacre cometido por tropas americanos no Iraque há uns meses atrás. Dando de barato que ocorreram mesmo (porque já me habituei a ver notícias destas falsificadas), imagino que seja matéria ideal para provar a maldade dos americanos, se bem que a cereja em cima do bolo seja “provar” que tudo isto tenha sido ordenado pelas chefias mais altas, quem sabe o Rumsfeld ou o próprio Bush influenciado por conversas diárias que tem com o Senhor. Tudo isto é puro niilismo. Também não serve de grande consolação saber que a democracia americana irá punir severamente os culpados, como mais nenhuma outra em qualquer outra parte do mundo o faria. E isto não serve de consolo porque a prevenção falhou.

Quando a instituição militar americana gasta quantias astronómicas em tantos projectos, não podiam investir mais no próprio capital humano e no seu controlo emocional para minimizar a probabilidade de situações como estas? Os olhos do mundo estão posto na ínfima coisa que os seus soldados façam e poucas coisas podem minar tanto a credibilidade de um país como acontecimentos como este. Mesmo que o Iraque se torne num país estável, harmonioso e próspero, durante décadas eventos como este serão lembrados. Um soldado tem que ser corajoso, mas a diferença entre a coragem e a inconsciência está no controlo. Se os EUA querem ganhar alguma credibilidade, devem banir todos os inconscientes do seu exército (em sentido lato). Vão ser odiados na mesma por meio mundo, contudo, a probabilidade de ocorrerem actos odiosos que perdurem nas consciências indelevelmente será muito menor. Penso que é um investimento muito melhor do que refinar cada vez mais o equipamento militar (excepto quando se aposta na precisão que pode baixar o número de vítimas), até porque mais ninguém já lhes faz concorrência nesse aspecto.

MC
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