Os novos tribunais
Os portugueses adoram fazer da vida uma sucessão de actos de julgamento, naturalmente dos outros. Não percebo se isto faz parte da natureza humana ou se é influência das séries televisivas, mas parece que o único modo de se discutir coisas neste país é fazer de qualquer mesa de café um tribunal popular, em que uma das partes defende uma posição e a outra parte o lado oposto. No fim, o vencedor leva tudo, não por ter dado os melhores argumentos, mas por ter tido uma retórica mais vistosa.
Contudo, nos últimos tempos outro tipo de tribunal tem vindo a ganhar forma, que vem renovar a tradição dos tribunais de Santo Ofício. Como sabemos, neste tribunais o acto de julgamento e a própria aplicação da pena começavam logo a confundir-se desde início. As possibilidades de defesa eram muito diminutas, não havia lugar para o apuramento da verdade, uma vez que o juiz do processo já a “sabia” de antemão. Vejo este tipo de prática ser renovada nos dias actuais quando se torna cada vez mais difícil promover o debate livre, quando as opiniões divergentes têm que se vergar ao politicamente correcto, quando se promovem cada vez mais debates em que os comentadores têm todos a mesma opinião.
Mas também em actos mais discretos. Por exemplo, esta manhã vi uma pretensa especialista na televisão pública a comentar a guerra do Vietname. Não conhecendo eu a temática em profundidade, não pude deixar de sentir alguma má fé nos comentários. O ponto chave foi quando se falou nas lições para o futuro. Segunda a dita especialista, a guerra do Vietname ainda hoje torna difícil a reconciliação do país, e isto seria uma lição que a “comunidade internacional” devia aprender em relação à intervenção no Iraque.
Surgiram-me de imediato uma série de questões. Porquê apenas a referência à intervenção no Iraque? Porque não referir o Kosovo e a Tchechénia? Porque não falar das manobras militares francesas em África? Porque não falar das ameaças chinesas em relação à Formosa, já com o terrível passado interno e no Tibete? É difícil perceber que quem nos quer ensinar algo do passado se lembre apenas dos acontecimentos mais recentes.
Foi feita a ligação entre a difícil reconciliação no Vietname e aquela que se espera no Iraque por causa da intervenção americana. É de ficar estupefacto com os simplismos de certas mentes. Pensava eu que essa reconciliação seria problemática porque durante décadas de ditadura uma minoria sunita oprimiu uma maioria xiita e ainda outras etnias, como os curdos. Não digo que a intervenção militar tenho feito maravilhas em prol dessa reconciliação, mas parece-me de todo disparatado sugerir que é a fonte de todos os problemas, como se antes o Iraque fosse um dos países mais agradáveis no mundo para se viver.
Foram também referidas as questões da legitimidade internacional. Este tipo de argumentação é risível, para não dizer outra coisa. Todos parecem acreditar que a legitimidade internacional é um valor em si. Mas que legitimidade é esta, que não se importa minimamente se ditadores massacram milhares de pessoas desde que feito dentro de fronteiras, e se dita o que é certo e errado na ONU por votações baseadas em jogos de poderes de apenas 5 países membros do conselho permanente? Trata-se de uma legitimidade meramente formal, uma vergonha para a humanidade.
Longe de mim estar aqui a defender que a intervenção no Iraque foi acertada em toda a linha. Apenas reconheço a complexidade das questões, que é permanentemente negada por estes novos juizes de Santo Ofício. No alto da sua moralidade, indicam-nos todos os “contras” das decisões tomadas. Fazem fé que o comum dos mortais não se dê conta que o não decidir também tem consequências. Em coerência, deviam também nos dizer quais os “contras” de não se decidir. O facto de não o fazerem, de negarem a complexidade das questões, mostra apenas vassalagem ao valor o niilismo. Que futuro se pode esperar de uma civilização assim, que já nada quer?
MC
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