sexta-feira, abril 29, 2005

Os novos tribunais


Os portugueses adoram fazer da vida uma sucessão de actos de julgamento, naturalmente dos outros. Não percebo se isto faz parte da natureza humana ou se é influência das séries televisivas, mas parece que o único modo de se discutir coisas neste país é fazer de qualquer mesa de café um tribunal popular, em que uma das partes defende uma posição e a outra parte o lado oposto. No fim, o vencedor leva tudo, não por ter dado os melhores argumentos, mas por ter tido uma retórica mais vistosa.

Contudo, nos últimos tempos outro tipo de tribunal tem vindo a ganhar forma, que vem renovar a tradição dos tribunais de Santo Ofício. Como sabemos, neste tribunais o acto de julgamento e a própria aplicação da pena começavam logo a confundir-se desde início. As possibilidades de defesa eram muito diminutas, não havia lugar para o apuramento da verdade, uma vez que o juiz do processo já a “sabia” de antemão. Vejo este tipo de prática ser renovada nos dias actuais quando se torna cada vez mais difícil promover o debate livre, quando as opiniões divergentes têm que se vergar ao politicamente correcto, quando se promovem cada vez mais debates em que os comentadores têm todos a mesma opinião.

Mas também em actos mais discretos. Por exemplo, esta manhã vi uma pretensa especialista na televisão pública a comentar a guerra do Vietname. Não conhecendo eu a temática em profundidade, não pude deixar de sentir alguma má fé nos comentários. O ponto chave foi quando se falou nas lições para o futuro. Segunda a dita especialista, a guerra do Vietname ainda hoje torna difícil a reconciliação do país, e isto seria uma lição que a “comunidade internacional” devia aprender em relação à intervenção no Iraque.

Surgiram-me de imediato uma série de questões. Porquê apenas a referência à intervenção no Iraque? Porque não referir o Kosovo e a Tchechénia? Porque não falar das manobras militares francesas em África? Porque não falar das ameaças chinesas em relação à Formosa, já com o terrível passado interno e no Tibete? É difícil perceber que quem nos quer ensinar algo do passado se lembre apenas dos acontecimentos mais recentes.

Foi feita a ligação entre a difícil reconciliação no Vietname e aquela que se espera no Iraque por causa da intervenção americana. É de ficar estupefacto com os simplismos de certas mentes. Pensava eu que essa reconciliação seria problemática porque durante décadas de ditadura uma minoria sunita oprimiu uma maioria xiita e ainda outras etnias, como os curdos. Não digo que a intervenção militar tenho feito maravilhas em prol dessa reconciliação, mas parece-me de todo disparatado sugerir que é a fonte de todos os problemas, como se antes o Iraque fosse um dos países mais agradáveis no mundo para se viver.

Foram também referidas as questões da legitimidade internacional. Este tipo de argumentação é risível, para não dizer outra coisa. Todos parecem acreditar que a legitimidade internacional é um valor em si. Mas que legitimidade é esta, que não se importa minimamente se ditadores massacram milhares de pessoas desde que feito dentro de fronteiras, e se dita o que é certo e errado na ONU por votações baseadas em jogos de poderes de apenas 5 países membros do conselho permanente? Trata-se de uma legitimidade meramente formal, uma vergonha para a humanidade.

Longe de mim estar aqui a defender que a intervenção no Iraque foi acertada em toda a linha. Apenas reconheço a complexidade das questões, que é permanentemente negada por estes novos juizes de Santo Ofício. No alto da sua moralidade, indicam-nos todos os “contras” das decisões tomadas. Fazem fé que o comum dos mortais não se dê conta que o não decidir também tem consequências. Em coerência, deviam também nos dizer quais os “contras” de não se decidir. O facto de não o fazerem, de negarem a complexidade das questões, mostra apenas vassalagem ao valor o niilismo. Que futuro se pode esperar de uma civilização assim, que já nada quer?

MC

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