quinta-feira, abril 14, 2005

O papel da insatisfação


Kirkegaard definiu 3 planos da existência, o estético, o ético e o espiritual. Os nomes escolhidos pelo filósofo dão-nos logo uma boa imagem daquilo que consistem os planos, hierarquias de modos de vida que se superiorizam à anterior. Se nos perguntarem em que planos estamos, teremos tendência a dar respostas um pouco evasivas, do género “um pouco nos 3”, “entre o primeiro e o segundo”. Contudo, Kierkegaard era claro, para ele não existiam meios termos, só podemos estar num dos planos e nunca numa das fases intermédias. A transição entre os planos é brusca, como um renascer. Por isso, de nada valem esforços modestos, são necessários actos decididos para efectuar a transição.

A plena realização só seria conseguida com a “estadia” no plano espiritual, e a permanência nos planos anteriores conduziria a uma insatisfação. Contudo, essa insatisfação até era uma coisa positiva, porque seria um estímulo a fazer o salto para o plano acima. Estamos habituados a esta ideia de que o progresso se deve em muito à insatisfação. No plano individual, se falarmos de progresso interior, isso será verdade em muitos casos. Mas fazermos a transição disso para o plano social pode ser arriscado.

Uma sociedade insatisfeita, estou em crer, terá mais tendências para ficar apática do que se motivar para progredir. Se pensarmos nos principais “agentes” causadores do progresso, o comércio e as inovações científicas e tecnológicas, parece-me óbvio que não os move propriamente o desânimo e a tristeza. Cientistas e empresários de sucesso (em mercado aberto e competitivo) poderão naturalmente ser pessoas insatisfeitas, mas em comparação com a média, eles terão um grau de satisfação bastante mais elevado. Por isso, arrisco mesmo em dizer que o progresso social se deve mais à satisfação do que à insatisfação.

E nem será assim tão difícil perceber porquê. As pessoas mais satisfeitas em geral são também mais enérgicas, a criatividade desponta-lhes mais naturalmente. O cientista ou o engenheiro levam, quando inseridos em projectos estimulantes, o seu trabalho quase como uma brincadeira de criança, um jogo. Um empresário de topo é um caçador moderno, de acordo com os seus instintos ancestrais. Apesar de haver obras artísticas geniais motivadas pela tristeza, as grandes explosões culturais estiveram em muito ligadas a momentos positivos, de aumento da satisfação.

Vemos ainda que são precisamente as sociedades mais satisfeitas (o que quer isto dizer exactamente é difícil definir..) aquelas que mostram mais ânsia de evoluir. As sociedades pobres parecem muitas vezes conformadas, sem estímulo. A ilusão de que a insatisfação produz o progresso parece-me ser uma inquinação ideológica. Se retirarmos exemplos avulso da História poderemos ser convidados a pensar assim. Cenários “clássicos” de regimes despóticos, que oprimiam o povo, que vivia pobre e miserável até se revoltar. Se houve momentos em que estas revoluções bruscas foram necessárias (na sua origem, revolução significa apenas mudança de direcção, o que pode ocorrer de forma muito suave, quase imperceptível), fazer disso uma condição imprescindível para o progresso é um dogma ideológico que muitos ainda não se conseguiram libertar. A tendência que os revolucionário têm de se aproximar dos insatisfeitos leva-os, sem saberem, a distanciarem-se também do progresso.

MC

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