terça-feira, agosto 10, 2004

Marcelo Rebelo de Sousa

Algumas semanas atrás, o professor Marcelo Rebelo de Sousa avaliou, como só ele sabe, a constituição do novo governo. Basicamente, arrasou todas as decisões tomadas, mas fê-lo mantendo, aparentemente, “o nível”. A sua admirável capacidade intelectual permitiu-lhe falar mais de meia hora sem guião à frente, sabendo o nome dos ministros e o seu historial, sem uma única falha de memória, sem uma pausa comprometedora. Além disso, tudo o que diz é justificado e sem falhas de raciocínio aparentes.

Marcelo é, sem dúvida, alguém de capacidades impressionantes, e num país em que os notáveis são caracterizados por uma brutal falta de cultura, isso deixa-o muitas vezes demasiado deslumbrado consigo mesmo. Para tal, também contribuirá ser professor de alunos mal preparados, como acontece frequentemente em Portugal. Marcelo não se coíbe de fazer apelo às suas memórias, de lembrar as suas chamadas de atenção que se revelaram profética. De forma bastante cordial e amigável, tornou-se um pouco o “professor de todos os portugueses”.

No entanto, tal como acontece a tantas pessoas que nunca meteram “as mãos na massa”, a sua capacidade de ponderação e de perceber as limitações do poder do raciocínio é fraca. Lembro-me de um comentário que fez em tempos, e que em 2 minutos deu conselhos a Bush, Blair, Chirac e Aznar sobre as decisões que deviam tomar a propósito dos destinos do mundo. Esquecerá o professo que estas pessoas têm acessores bem melhor preparados que ele para o auxiliarem? Ou quererá o professor dar a ideia que os poderosos tomam todas as decisões em solidão, em função de qualquer capricho momentâneo e que é necessário chamar-lhes a atenção para algumas trivialidades?

O professor parece esquecer com facilidade algumas opiniões disparatadas que deu. Por exemplo, a determinada altura no campeonato passado, o SLB (sim, estou a meter futebol no assunto) encontrava-se num período de resultados menos favoráveis. A explicação de Marcelo foi simples: O Benfica não tinha um centro de estágios e sofria muito da instabilidade de treinar uns dias aqui, outros ali. Enquanto isso não se resolvesse, a equipa não teria consistência e os bons resultados não chegariam. Seguindo este raciocínio, o Sporting, com o seu centro de estágios de condições excepcionais, iria deixar facilmente o Benfica para trás. No entanto, o que vimos foi bastante diferente. O Benfica conseguiu sair da situação desfavorável e atingir o segundo lugar, bater o Sporting no seu próprio terreno, vencer a Taça de Portugal e ter uma prestação razoável nas competições europeias. O Sporting teve a chamada época para esquecer.

Obviamente que muitos factores influenciaram os resultados e é esse o meu ponto. As explicações do professor tornam-se absurdas quando ele quer fazer que tudo seja determinístico e que as causas por ele avaliadas vão desembocar nas consequências por ele previstas. Quem tem algum conhecimento da realidade do estudo de fenómenos físicos saberá que as coisas mais elementares são muitas vezes de uma grande dificuldade de análise. É frequente não existir descrição intelectual ou matemática possível, tendo-se recorrer a simulações numéricas para obter alguns dados.

Mas porque razão Marcelo cai num erro básico destes? Por um lado a sua inteligência permitirá algumas vezes tirar conclusões acertadas. Por outro, em certas situações, as conclusões que ele prevê para o futuro, na realidade já estão em marcha, o que se trata de um logro porque se está a descrever o presente. E na maior parte das vezes, os resultados são tão ambíguos que sempre se pode descobrir alguma verdade nas previsões.

Talvez haja razões mais mesquinhas. Ao invés de raciocinar sobre o futuro para saber como ele será, a intenção poderá ser a de lançar previsões para o tentar condicionar. Recuemos às últimas eleições legislativas para ilustrar este ponto. Nas semanas anteriores, as sondagens não davam uma vitória clara a PS ou PSD. Na sua habitual prelecção televisiva, o professor fez um discurso admirável. Deu tudo como adquirido, Ferro Rodrigues estava derrotado. Com mestria, usou o seu próprio exemplo, também ele como Ferro tinha mostrado confiança na vitória nas eleições, apesar de saber que elas já estavam perdidas, mas a política era mesmo assim, havia que dar a cara e mostrar a confiança que não se tinha. Na verdade, a analogia que Marcelo fez entre as duas situações é intelectualmente desonesta. No entanto, a sua eficácia foi grande em termos emocionais, porque Ferro Rodrigues foi considerado um derrotado por antecipação e ninguém quer se juntar aos derrotados.

De facto, o PS ficou um pouco atrás do PSD, e nunca saberemos se a pequena diferença deverá a esta “pequena” artimanha de Marcelo. Ele certamente se encherá de vaidade e pensará que os destinos do país por ele foram decisivamente influenciados, sem que alguém tenha dado por isso.

A língua de Marcelo fere agora os ouvidos de Santana, e o professor não esperou para ver e atacou quase todas as frentes. Fê-lo, em minha opinião, para mostrar a Santana que dele exige alguma vassalagem. Presumo que Santana fingirá que a presta...

Mas contrário de todos aquele que manobram no escuro e exercem a sua influência de forma escondida, Marcelo faz tudo isto aos olhos de todos. Merecerá uma vénia por isso.

Adenda:

Entretanto, passou mais um domingo desde que comecei a escrever este post e o professor voltou a espalhar a sua sabedoria sobre o país. Não serei a pessoa indicada para dizer que a última palestra de Marcelo confirma as minhas suposições. Marcelo divagou sobre as razões estéticas da elaboração do governo, dos atrasos, das folhas trocadas, das confusões. Discutiu ainda as pessoas, os secretários de estado, porque é evidente que lhe agrada fulanizar. Sobre o programa do governo quase nada disse. Na verdade, evitou falar da única coisa que tinha sentido abordar. Mas os sentidos também se criam, e Marcelo é disso um dos responsáveis. Para Marcelo tudo terá que ser posto como: acho apropriado/não acho apropriado; parece-me bem/mal; foi atempado/não foi atempado; é de elementar bom senso/não é de elementar bom senso; o Zé Povinho percebe/O Zé Povinho não percebe...

Mas onde pareci acertar foi que Marcelo exige de facto que lhe seja prestada vassalagem. Claro que não o faz ostensivamente, fala em nome dos comentadores, até em nome de Pacheco Pereira (quando chegam a criticar este governo por razões opostas). Marcelo diz que o governo errou, não é só ele que diz, são todos os comentadores, mas vai a tempo de mudar. Marcelo acrescenta ainda que não é positivo o governo criar uma guerra com os críticos. Marcelo esquece os erros dos comentadores, tantas vezes grosseiros, tantas vezes deliberados, mas a estes não aconselha mudança de rumo. Na verdade, Marcelo limitou-se a dar um ultimato ao governo. As regras do professor são para cumprir. Um governo que se anuncia estético e populista não pode ofuscar comentadores também eles estéticos e populistas.
MC
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