sexta-feira, agosto 25, 2006

Mantendo o nível a que nos habituaram

Supostamente devia votar para a autarquia de Setúbal, mas o meu passado de anarquista isolado leva-me evitar essa tarefa tétrica de colocar uma cruzinha num partido de esquerda (só há partidos de esquerda em Portugal), além de que um voto em branco na prática é um nulo. Mas até poderia ter votado em Carlos Sousa para livrar Setúbal do pior autarca da história do país, que foi Mata Cáceres, do PS. Não estou muito virado para analisar os pormenores que envolvem a purga comunista do seu representante em Setúbal. O caso já é passado distante para o ritmo da nossa comunicação social. O que me parece fundamental assinar é total falta de pudor do PCP, que sente-se perfeitamente à vontade em mostrar a sua veia totalitária e a sua cultura antidemocrática. É preciso perceber que o PCP usa a realidade como um acessório para as suas fantasias ideológicas e que não defende nada, defende-se apenas… e fá-lo atacando.

As salas de chuto vão avançar. No telejornal da RTP promoveu-se um pequeno debate, com dois médicos defendendo posições contrárias. O que estava a favor destas salas, porque o seu negócio depende da existência da carochada acredita nas virtudes das mesmas, falou da diminuição de riscos para o toxicodependente, das pessoas não verem aquele espectáculo degradante, etc. O partidário do contra até começou de forma prometedora, dizendo que concordaria com a solução se a toxicodependência não tivesse cura. Mas depois não desenvolve bem e mete a ONU ao barulho (e porque não os capacetes azuis a lutar contra a toxicodependência, já que para missões militares já se viu que não servem?) e enrola-se numa fragilidade argumentativa que deu pena. O que é ridículo é ninguém denunciar esta situação escandalosa de sermos obrigados a contribuir duas vezes para a causa do pó. A primeira é quando nos furtam ou roubam para arranjar dinheiro para a droga e a segunda vai nos impostos para o Ministério da Saúde “tratar” estes “inocentes”. Então aqui ninguém se lembra de falar das vítimas colaterais?

É muito interessante ver como a União Europeia tem tratado do cessar-fogo entre Israel e o Hezbolah. Primeiro que tudo, união é uma farsa. A França chegou-se à frente quando foi na altura da diplomacia e ainda se pensou que iria entrar em força militarmente devido às suas ligações com a área em questão ainda fizeram pensar que desta vez poderiam se portar à altura, para não perder prestígio (se é que o tem). Mas já se viu que a disposição era quase toda para a conversa. A Itália chegou-se à frente, é sempre uma oportunidade para brilhar. Mas brilha-se pouco quando não se é mais afirmativo e se fica numa atitude meio expectante também. E a sensação geral é que se vai deixar o tempo passar até a situação até se tornar insustentável e alguém com mais coragem tomar uma acção decidida. Se é assim que a Europa quer ter um papel relevante no mundo, só lhe resta mesmo reactivar o movimento do Não Alinhados.

MC
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Notas íntimas (3)

Tudo se alterou quando descobri que existia uma coisa chamada anti-americanismo e a ingenuidade teve o seu fim. No 11 de Setembro julguei que algumas manifestações de felicidade que via à minha volta teriam só duas explicações. Ou era apenas um disfarce para o nervosismo ou uma antipatia pueril pelos americanos, momentânea e que rapidamente se iria desvanecer. Mas a sequência de brutal demência que se seguiu, e ainda continua 5 anos depois, não se mostrou passageira ou mas um movimento sólido, com alicerces profundos e extremamente perigosos.

Tentando resumir a sequência de memória, foi mais ou menos assim. Primeiro foi a alegação de o 11 de Setembro só ter acontecido devido à acção que os EUA tiveram no mundo nas últimas décadas. Naturalmente que não se pode dizer que os americanos saíram imaculados de todos os locais que se meteram, mas se não fossem eles a União Soviética teria carta branca (e passadeira vermelha estendida pelos partidos de esquerda mundo fora) para dar azo ao seu imperialismo demente e a quase totalidade do globo viveria em regime colectivista, na absoluta miséria e sem a mínima liberdade. Depois, chamados à atenção de a maior parte das vítimas, nas torres gémeas serem civis e de mais de 80 nacionalidades, vieram com a argumentação relativista de que não há vítimas inocentes e todos têm a sua parte de responsabilidade. Para esta gente parece que só mesmo os terroristas não têm desculpas a apresentar.

Mas o melhor ainda estava para vir, com a invasão do Iraque. Não é minha intenção discutir a questão em si, porque abordada de forma séria tem bons argumentos de ambos os lados e a ideia agora é apenas fazer um roteiro da demência. O tempo que mediou desde o ataque ao Afeganistão e as hesitações da Administração Bush abriram completamente o flanco para as mistificações criadas. O dossier das armas de destruição maciça (ADM) foi completamente invertido na comunicação social. Se inicialmente era o Iraque que, segundo as resoluções da ONU, teria de provar que tinha destruído as suas ADM, num passe de mágica passaram a ser os americanos a ter que provar que elas existiam. Não se percebe muito bem porque Bush e companhia se colocaram assim tão a jeito para se exporem ao ridículo. Mas o certo é que toda a gente pensava mesmo que mal se entrasse no Iraque se iria tropeçar em armas químicas e ogivas nucleares, não só os serviços secretos americanos (que tão mal funcionam), bem como os serviços secretos de outros países insuspeitos como a França e a Rússia. Mas não só, os próprios anti-americanos também pensaram que se iriam encontrar ADM, porque se apressaram a dizer que se fossem descobertas só podiam ter sido os americanos a tê-las lá colocado.

Mas a sequência de argumentos brilhantes estava longe do fim. Houve o argumento do petróleo, os americanos foram lá para roubar petróleo. Não se deram ao trabalho de procurar os documentos que mostravam claramente para onde ia o petróleo e curiosamente agora o argumento já não faz eco. Então não é fácil provar que o dinheiro do petróleo está a engordar as contas dos amigos do Bush? Depois houve o argumento genial de que os americanos sabiam que havia ADM porque tinham sido eles a vendê-las. Referiam-se ao tempo em que os EUA apoiaram o Iraque na lógica de contrariar um perigo bem maior do Irão. Não se preocuparam em saber que os EUA foram dos primeiros a cortar essa ajuda, bem antes da primeira guerra do golfo, e que o armamento iraquiano era composto com material das mais diversas proveniências, mas em especial da Rússia, China e França.

Os anti-americanos também juraram a pés juntos que o Iraque não tinha nada a ver com grupos terroristas. Não há terroristas no Iraque, diziam eles. Pouco depois rebentou a vaga de ataques terroristas no Iraque. Longe de verem aqui a sua posição fragilizada, aproveitaram para lançar nova argumentação, de que a invasão provocava o terrorismo. Até parece um argumento sério, mas se pensarmos bem, será que numas poucas semanas indivíduos normais tornam-se em bárbaros terroristas? Em vez de geração espontânea não terá existido antes uma concentração do que já existia? Esta até pode ter sido uma das razões ocultas para a invasão, fazer a luta contra o terrorismo bem longe das fronteiras dos EUA. Muitas outras fantasias se criaram, como a do saque do museu de Baguedade, até aos delírios que querem fazer crer que o 11 de Setembro foi uma encenação dos próprios americanos.


Mas aos poucos comecei aperceber-me que a questão era ainda mais grave. Não era apenas ódio contra os americanos. Tudo o que fosse um ataque no mundo livre era exaltado ou no mínimo, ignorado. Muitos apressaram-se a ceder à chantagem a propósito das caricaturas de Maomé. E aos poucos tornou-se para mim evidente que o que está em questão é mesmo o ódio à liberdade, ao sucesso alheio e aos valores do ocidente que se gerou no interior do próprio ocidente. O movimento em causa já não tem grande coragem para sugerir uma alternativa socialista. Preferem aderir a causas minoritárias ou, ainda mais preocupante, a causa alguma. O que é impressionante é mesmo assim terem tanta energia.

MC
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sexta-feira, agosto 18, 2006

Notas íntimas (2)

A segunda recordação data da segunda guerra do Golfo, no tempo do reinado de Clinton. Sim, existiu uma guerra por esta altura, não um mero arrufo, mas uma série de bombardeamentos que duraram semanas até destruir as instalações que supostamente produziriam armas de destruição maciça. Curioso na altura ninguém ter colocado grandes dúvidas que o Iraque andasse mesmo a produzir tais armas. Mas havia quem protestasse. Talvez o exemplo mais marcante desse protesto tenha acontecido num programa de televisão, onde uma banda actuou (penso que se chamava Despe e Siga) e o líder tinha uma trança isolada especialmente ridícula. Alguém lhe perguntou o porquê daquela trança e de forma eloquente o jovem disse que representava um protesto contra a guerra e contra os americanos. E foi este o paroxismo do movimento pacifista da altura. Não conseguia perceber porque razão agora as pessoas até eram mais tolerantes em relação aos americanos, até porque agora estavam quase sozinhos, enquanto na primeira guerra tinham sido mais críticos quando estes estavam acompanhados. Continuava a ser terrivelmente ingénuo. Esta segunda guerra tornou-se tabu e foi apagada do imaginário colectivo.

MC
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Notas íntimas (1)

A primeira recordação sobre o assunto data por altura da primeira guerra do Golfo. O Iraque de Sadham Hussein invadiu o Kuwait vizinho. Os valores do petróleo falaram mais alto, e muito bem, colocando o mundo inteiro contra o Iraque. Estavam lá todos, os americanos, os franceses, os russos, numa imensa coligação internacional com dezenas e dezenas de países. Nem Portugal quis faltar, enviando para o Índico uma traineira de guerra. O acto não passou despercebido a Sadham, que de imediato declarou guerra a Portugal. Um gesto aparentemente irrelevante, patético, inconsequente, que passou quase despercebido na comunicação social. Mas tomei aquela ameaça muito a sério, não por receio de me alistarem de forma prematura e coerciva, mas por ser a primeira e espero a última vez tinha visto alguém a declarar guerra ao meu país. Ora, estando lá todos, espantava-me ouvir tantos dizerem que os americanos não iam derrotar Sadham assim tão facilmente. Até parecia que sugeriam que tinham sido os EUA os provocadores da situação e desejassem que o Iraque saísse vitorioso. Não percebia bem porquê, era muito ingénuo.

MC
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sexta-feira, agosto 11, 2006

A balança da liberdade

Porque razão é tão incerta a transição da ditadura para a liberdade? Não é apenas porque os seres humanos são imprevisíveis. As transições abruptas, onde a liberdade política é ganha de um dia para outro, falham em geral. Mantêm-se as anteriores configurações sociais e mesmo que haja vontade de viver a liberdade, não se criaram, por milagre, toda uma série de bens para consumo tão ansiados. Ao contrário do que pensam os intelectuais, quem vive em ditadura espera que a liberdade lhes dê em primeiro lugar riqueza, colocando em segundo plano as liberdades políticas. O que é trágico nesta esperança, legítima, é basear-se ainda no antigo paradigma totalitário. Quem vive durante décadas habituado a ver o Estado como fonte de tudo o que é bom e mau, tem dificuldade em perceber que em liberdade vai passar a ter de assumir algumas responsabilidades. E terá de perceber que a liberdade não traz riquezas de forma automática, remove apenas os obstáculos que o dirigismo centralista colocava na sua criação eficaz por parte dos indivíduos.

Como se não bastasse, a transição política pode não alterar grande coisa nas estruturas de poder. As coisas até podem mudar de nome, um monopólio estatal cede lugar a um monopólio privado em que essencialmente mandam os mesmos, mas não há um ganho significativo, porque o famoso mercado ainda não existe. Pior ainda, a transição política para a “liberdade” (e à medida que se vai aprofundando o assunto percebe-se que as aspas são mesmo necessárias) pode até consistir numa degradação dos serviços essenciais do Estado. Uma situação de censura e repressão, de certa forma previsível e a que as pessoas se habituaram, pode ser substituída por outra em que reina o caos, a intimidação das máfias ou, nos piores casos, o terror dos senhores da guerra.

Perante este cenário, há sempre um ideólogo de serviço que nos afirma que se provou, mais uma vez, que a liberdade e o mercado não resolveram problema algum, apenas os vieram agravar. Esta análise, demasiado simplista mas eficaz, contém em si dois erros. O mais óbvio é que não ficou nada provado que a liberdade e o mercado falharam, simplesmente porque nem sequer chegaram a ser testados. Mas o menos óbvio e mais grave é que se esconderam as verdadeiras razões do falhanço. O que falhou foi mais uma tentativa de planeamento centralista. Na verdade, a “transição para a liberdade” não foi a primeira acção do novo regime mas sim a última acção do antigo, mesmo que os protagonistas tenham mudado. E o que falha no concreto é ainda o antigo regime porque, na prática ele não foi eliminado numa miríade de aspectos. Ou seja, a sociedade ainda tem uma vivência totalitária mas pensa estar a experimentar a liberdade.

Isto dá-nos uma pista sobre como poderá ser implementada uma transição melhor sucedida. Ela terá de ocorrer organicamente, nos vários aspectos da vida, por mais insignificantes que possam parecer a quem vive em democracia. Nas suas inevitáveis decadências, as ditaduras cometem o “erro” de ceder alguma liberdade económica, o que lhes pode ditar o seu fim a prazo. O regime terá tendência em achar que esta cedência não é significativa, porque mantém controlo sobre as liberdades políticas, enquanto tem a vantagem de se livrar do fardo do planeamento, que nunca se revelou eficaz e começava a colocar o sistema em risco. O erro desta análise é não perceber que grande parte do que os indivíduos fazem são interacções económicas. Lentamente, os indivíduos irão acumular mais poder, informação e ambição. A verdade é que as pessoas, desta forma, já provaram um pouco do sabor da liberdade e vão querer mais.

A forma como este processo se desencadeia, o tempo que dura, o tipo de progressão, depende muito de caso para caso. Mas nesta situação, quando se dá a transição política para a liberdade, ela ocorre de forma mais natural. A sociedade já aprendeu, em grande parte, a viver em liberdade, porque não depende em tudo do Estado. Haverá ainda muitos vícios por eliminar e as intromissões na vida privada serão muitas, mas as condições essenciais estão criadas.

Pensemos também nas situações opostas, em que se tenta instituir uma ditadura. É muito significativo que uma das primeiras medidas que se toma seja precisamente a nacionalização de empresas ou, mantendo-as privadas, subjugá-las totalmente ao novo poder político. O resultado é uma limitação de opções disponíveis e uma descida do nível de vida. O regime promete resolver as dificuldades que ele próprio criou, pedindo um reforço de poderes. Os mandatos passam a ter maior duração, a constituição é alterada, os poderes presidenciais aumentam, a informação passa a ser controlada. E o resultado passa por uma agravação ainda maior da situação. Mas o regime não desarma e lança culpas aos inimigos internos e os externos (imperialistas) e promete a solução com um controlo ainda mais apertado. Esta última cedência, por desespero, é o último passo na criação do Estado totalitário, que cria em si instituições de auto-preservação prontas para se manterem durante décadas independentemente de quem as dirige.
MC
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sexta-feira, agosto 04, 2006

Fidel é eterno

No livro “1984”, de George Orwell, uma ditadura controla a vida dos indivíduos ao ínfimo pormenor. Nunca chegamos a saber se a figura de referência, o Grande Líder, existe de facto. Em Cuba, neste momento, El Comandante passa a ter um estatuto diáfano semelhante. Pode até já nem estar vivo, mas se as coisas forem bem feitas isso nem terá muita importância. Quem associa a duração do regime cubano essencialmente ao Carisma de Fidel Castro, agora poderá temer que tudo se desmorone com a liderança, presumivelmente fraca, do seu irmão. A minha sugestão é simples, tornar Fidel eterno. Cada vez que o seu irmão Raul falar em público, por trás estará uma imagem gigantesca d’ El Comandante. Raul Castro nunca irá discursar em seu próprio nome, irá falar sempre em nome da revolução e do irmão Fidel. Mil e uma notícias serão espalhadas, afirmando que El Comandante está a melhorar e irá regressar em breve. Cuba terá o seu D. Sebastião.

Alguns jornalistas perguntam nas ruas de Havana o que o povo pensa do estado de Fidel Castro. É curioso que não coloquem em dúvida a autenticidade das declarações de pesar e esperança que ouvem. Não que os cubanos sejam falsos por natureza, mas o medo de represálias que o povo sente, devia levar os senhores jornalistas, sempre tão prontos a dar a sua interpretação dos factos, a serem neste caso um nadinha mais opinativos. Ainda assim admito que os cubanos tenham essencialmente duas posições. Uma é a de fugir da ilha para Miami a todo o custo e a outra é a de acreditar ainda na revolução. Várias explicações encontro para esta segunda atitude.

Preferir a revolução à liberdade, paradoxalmente, é privilegiar a estabilidade à mudança. A liberdade tem sempre um elemento de risco imprevisível associado. Em ditadura esse risco costuma ser bem conhecido, uma facto consumado com o qual se aprende a viver. Além disso, não existem só duas hipóteses, a ditadura presente ou a liberdade futura. Há ainda o receio de que, ao tentar ganhar a liberdade, a manobra falhe e se passe para uma ditadura bem pior. Mas mesmo quando há algum entusiasmo inicial pela liberdade, aparecem depois as dificuldades que fazem querer voltar ao passado. Há ainda uma quarta hipótese, fictícia, que advém da longa propaganda do regime, que alude ao passado, que poucos ainda se conseguem lembrar com clareza. A estratégia do regime é simples, esconder a hipótese da liberdade e dar apenas a alternativa actual e uma outra monstruosa.

Mas a questão de aprender a viver em liberdade é muito antiga, estando já descrita na Bíblia, quando o povo de Israel livra-se da escravidão que vivia no Egipto e a cada dificuldade clama novamente pela segurança do cativeiro. Inicialmente guiados apenas pelo profeta Moisés, o passo seguinte é descentralizar, com o objectivo final de cada um ganhar a sua própria liberdade. O processo é incerto e mesmo a liberdade consumada é frágil. As enormes vantagens que advém da liberdade são, ainda, facilmente esquecidas. É fácil cair na ilusão de que a multiplicação de alternativas e a geração de mais bens de todo o tipo é uma emanação do Estado. As pessoas não se apercebem que são elas mesmas, ao interagir umas com as outras, que criam as vantagens de viver em sociedade.

MC
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